quinta-feira, 29 de junho de 2023

DESSAS FLORES

A prosa descarada faz gandaia

Nas linhas sensuais da poesia.

E se ao verso seduz tal fantasia,

A musa tanto goza que desmaia.


Não há tesão em linhas sem estética,

Poesia sem prosa não dá fome,

A prosa só reluz e se consome

Na face sem-vergonha da poética.


Certa vez, por descuido ou desvario,

A prosa lançou rima em meus pudores

E o verso se abriu prosa em pleno cio.


Desde então eu me curvo aos pés das duas

Suplicando os segredos dessas flores

Que em meus sonhos mais puros correm nuas.







domingo, 25 de junho de 2023

Prefeito veste Azul, Lampião veste Rosa

As cores sempre tiveram simbologia especial em Mossoró, notadamente nas disputas político-partidárias. Durante anos, o verde do MDB e o encarnado da Arena dividiram a cidade nos períodos eleitorais. Pelo tom da roupa, deduzia-se em quem votava o sujeito ou a sujeita, a exemplo do que aconteceu em pleitos recentes, com o vermelho petista de um lado e o verde-amarelo bolsonarista de outro.

A coisa, aliás, ia além das vestes. Seu Pedro, conhecido como Homem do Carneiro Verde, segundo narra o cronista Odemirton Filho, no blog do jornalista Carlos Santos, usava tinta xadrez para enverdecer a lã do inocente ovino que arrastava às famosas vigílias do ex-governador Aluízio Alves, o Cigano Feiticeiro. Era a maneira de Seu Pedro não deixar o menor sinal de dúvida sobre sua condição aluizista.

Contam também que, nos anos 1960, o tribunal designou um juiz forasteiro para a comarca. O magistrado era discreto e não dava pistas ideológicas, até que, um dia, alguém o viu sair da farmácia e resolveu buscar indícios no estabelecimento: “O que ele comprou?”, quis saber o curioso. “Escova de dentes”, respondeu o boticário. Aí veio a grande jogada, o xeque-mate: “Verde ou vermelha?”.

Quem se cria no País de Mossoró cresce impregnado por essas simbologias. Quem chega depois, logo se contamina pela semiótica local. Se bem que não é só aqui. Conforme escrevi logo no primeiro parágrafo desta crônica, a nação inteira caiu na gandaia, alguns em delírio coletivo. Até eu, sempre distante das polêmicas do gênero, passei, inopinadamente, a evitar determinadas combinações.

Talvez por ser mossoroense, infectado de nascença pela cisma das cores, eu tenha visto algo estranho na edição 2023 do Chuva de Bala: o prefeito Rodolfo Fernandes, herói e salvador, veste um Azul forte que se destaca no espectro anil proporcionado pelo choque entres luzes e cenário; e Lampião, o facínora, veste Rosa. Coincidência! Ninguém, a não ser um bruxo, criaria fantasia subliminar tão graciosa.


Imagem oficial do evento transmitida pela TCM

Imagem oficial do evento transmitida pela TCM

Psicoses à parte, registro aqui meu reconhecimento aos trabalhadores da cultura responsáveis pela construção desse espetáculo que projeta Mossoró no Brasil e no mundo. Não vou citar nomes, por serem muitos os amigos e amigas a brilhar no adro da capela de São Vicente, tantos, ao longo de tantos anos, que a lista sequer caberia neste Canto de Página. A vocês, os parabéns! Evoé! Merda!

sábado, 10 de junho de 2023

Isaura Amélia, a imortal

Não foi Isaura quem tomou posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Foi a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras quem tomou posse em Isaura. Longe de mim cutucar a imortalidade com lápis curto, até porque muitas pessoas queridas estiveram naquela instituição e outras tantas permanecem nos seus quadros. Desejo apenas enaltecer a grandeza da figura humana que acaba de chegar por lá.

Conheço Isaura Amélia desde sempre, afinal somos primos. Apesar do destroço que a política causou na família, dividindo-nos em três ou quatro bandas, permanecemos – ela, Vingt-un Rosado e eu – unidos pelos laços fraternais da literatura. Aliás, Vingt-un me disse certa vez, com o testemunho dos milhares de autores habitantes da biblioteca dele, uma frase que ficou gravada na memória: “Isaura é gênio da raça”.

De fato, a prima já era imortal muito antes de qualquer láurea, tanto pela produção acadêmica quanto pelo trabalho realizado nas entidades que coordenou. Há marcas indeléveis de sua passagem na Secretária de Cultura de Mossoró, Fundação José Augusto, Fundação de Apoio à Pesquisa e Secretária de Cultura do RN, no incentivo à produção bibliográfica, à música, ao teatro, à história, às artes plásticas, à pesquisa.

Do que me toca especialmente, registro três atos: o convênio com a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, para microfilmar o acervo do jornal O Mossoroense, de 1872 a 1950; a ideia, em um desses 14 de março, de pintar versos de poetas locais no asfalto, em diversos cruzamentos do centro de Mossoró; e o esforço que fez da cidade uma das primeiras do País a liberar recursos da Aldir Branc, na pandemia.

Foto sem identificação de autor copiada do portal da Ufersa

Ela é por demais generosa. Dá um cabimento danado a mim, que nem valho a palavra que leio, e até pareço ingrato por não participar das coisas para as quais me convida. De uns tempos para cá, as torres de cristal têm me causado impaciência e vertigem. Esse, contudo, não foi o motivo de eu não ter ido à academia saudá-la com pompa e circunstância. Foi a sala de aula, que limita a vida social do professor.

A ausência não significa que não fiquei feliz, que não vibrei com o reconhecimento a Isaura, sucessora de dois tios na arcádia potiguar: Tércio e Vingt-un, terceiro e vigésimo primeiro dos numerados do velho Jerônimo Rosado; sem dizer do primo Carlos Ernani Rosado Soares. Tércio, conheci em livros e por meio de relatos dos mais velhos. Vingt-un e Ernani, carrego a imensa alegria de haver convivido com ambos.

Ainda sobre minhas faltas, devo, desde 2022, um texto sobre o livro Isaura Amélia: coleção de arte. A obra, harmonia perfeita entre verbo e imagem, talvez seja o registro mais amplo das artes plásticas do Estado. São maravilhas reunidas pela autora ao longo de décadas, de gente famosa e de talentos desconhecidos, que, segundo Iaperi Araújo, no prefácio, foram generosamente dadas à Pinacoteca de Mossoró.

O livro merece crônica à parte, exclusiva. Por enquanto, fica aqui às vistas, sobre a mesa de trabalho, como inspiração para outras expressões. Hoje é dia de parabenizar à Academia de Letras por haver tomado posse em Isaura. Se deixarem, essa mulher vai sacudir a poeira dos fardões e revolucionar o casarão da rua Mipibu, aproximando-o dos interiores, das ruas e dos becos onde nasce, vive e pulsa a arte dos mortais.


domingo, 4 de junho de 2023

Esse aí é seu pai?

 Tipos populares frequentam livros, crônicas e artigos de diversos memorialistas e historiadores do Rio Grande do Norte há muitos anos. Em Mossoró existem páginas célebres de escritores de nomeada sobre figuras curiosas que ilustravam, com suas particularidades, a geografia humana local.

Nem sei se tais registros seriam “politicamente corretos” hoje, em tempos de revisionismo literário. Tais personagens, afinal, destacavam-se por reagirem a apelidos jocosos, por distinções físicas, por manias diversas e até por problemas mentais, a exemplo do rapaz que transava com fuscas.

Quando passei a frequentar Assú com regularidade, descobri que, por aqui, também há narrativas envolvendo personagens curiosas. Roque, imortalizado em mural de Gilvan Lopes, no Centro, é uma delas. Apesar de cego, dizem, informava as horas corretas, sem relógio; e percorria a cidade toda sem ajuda.

Roque, o “Cego da Hora”, morreu bem-antes de eu passar a morar na Terra dos Poetas. Gostaria de tê-lo conhecido e, quem sabe, entrevistado. Aliás, por que não pensamos nisso, meu amigo Lúcio Flávio? De meu tempo, entretanto, tomo a liberdade de fazer dois registros: Cachorra Lascada e Cleonice.


Roque, o Cego da Hora
 
Roque por Gilvan Lopes

Cachorra Lascada é magro, de estatura mediana. Às vezes parece ninja, às vezes encarna Rambo, a depender de como enrola a camisa na cabeça. Diariamente luta artes marciais com inimigos imaginários em via pública. Sempre torço por ele, que, até onde sei, não ofende ninguém de “mermo-mermo”.

Cleonice é uma mulher baixinha, gordinha, que anda do raiar do Sol à alta madrugada catando recicláveis e pedindo dinheiro. Há dias em que nos encontramos em diversos lugares, nos horários mais variados. A cada novo esbarrão, dirige-se a mim como se fosse a primeira vez: “R$ 2,00, moço bunito”.

Se estou acompanhado de Clarisse, minha proprietária, Cleonice vai se chegando com jeito e simpatia: “R$ 2,00, muié bunita e homi bunito”. Se tenho e dou, o elogio é reforçado com algum gracejo, mas, se não compareço, ela olha para Clarisse e dispara: “Tão novinha! Tão linda! Esse aí é seu pai?”.