sábado, 27 de maio de 2023

Segura na mão de Deus

Antes de começar a história, sinto que devo situar o leitor sobre as personagens envolvidas. A primeira sou eu, Cid Augusto, poeta sem talento, cronista de meia pataca, sedentário convicto e militante. Depois vem Clarisse Tavares, minha proprietária e cuidadora, fina e delicada que nem lixa 60, segundo o pai dela. 

Tem ainda Elen Nailla, personal trainer contratada por Clarisse para nos assistir na academia e, por fim, apresento Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira, Luiz da Funerária, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Econômico de Assú, ex-candidato a prefeito e CEO de um dos mais promissores complexos funerários do RN.

Luiz é simpaticíssimo, tão cativante que até pensei em transferir meu plano funeral para a empresa dele. Só não o fiz para não contrariar a promessa feita a Jacson Damasceno, ainda nos tempos da faculdade de jornalismo na UFRN, de ser enterrado em um caixão importado da Funerária Damasceno, da cidade de Catu, Bahia.

Nailla, a personal, é excelente no ofício. Pontual, cuidadosa e carrasca com delicadeza. Ruim de matemática, porém. Quando a gente conta 12 repetições numa máquina assassina, ela insiste que foram apenas oito. Quinta-feira última, quase me mata diante dos olhos de Clarisse, que não esboçou qualquer solidariedade.

É que a moça às vezes carrega nos pesos sem dar crédito às minhas anunciadas fraquezas. Ela superestima o aluno, imaginando que ele pode mais do que afirma. Em verdade, posso muito menos do que alego e não me importo de ser o fracote da academia, “puxando ferro” a menor que os demais frequentadores do local.

Sei que nessa brincadeira de erro de matemática por parte da professora e de excesso de confiança depositada no atleta, saí do treino abraçado a Clarisse para esconder a tremedeira nas pernas. Ainda na portaria, sentindo a alma ateia sair pela boca, comecei a cantar o hino: “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar...”.

Quando ergui o braço direito – o outro amparava minhas carnes trêmulas no corpo firme da mulher amada – e gritei a todo pulmão, 1/8 acima, com pausa dramática, “Segura na mão de Deus... E vai!”, surgiu diante de mim, como do nada, de sorriso espaçoso e braços arreganhados, o dono da funerária. Ele mesmo, meu amigo Luiz.



Ter com Luiz da Funerária é sempre motivo de alegria, prenúncio de bom papo, de boas risadas, mas a coincidência intriga – um corpo em petição de miséria, a música lutuosa, aquele encontro. Seria aviso de que a hora chegou? De que exercício mata, como sempre suspeitei? Ou de que devo fazer portabilidade do plano funeral?