sexta-feira, 8 de abril de 2016

O NARRADOR




Ontem fiz um discurso. Se é que meia dúzia de palavras encangadas umas nas outras merece esse rótulo, no sentido mundano da palavra. Não o discurso da Escola Francesa, não o discurso do Ciclo de Bakhtin, que se forma de todas as matérias, inclusive do silêncio e do esquecimento. Refiro-me à oratória, à técnica dos que seduzem as palavras na ponta da língua, diferentemente de mim, que já acordei com 14 anos de idade, trepado numa máquina de escrever.

Não sei dizer nada que não se imprima em letra. Outrora, no papel tabulado para suportar 30 linhas de 70 toques. Hoje, a tela do computador no formato A4 e margens que o bicho determina é a superfície onde me jogo que nem Rogério Dias, Laércio Eugênio, Everaldo Botelho, Marieta Lima, Anabela, na expectativa de pintar a cena que me chega de boca em boca, com as tintas da história e as marcas secretas das identidades de cada indivíduo que me conta algo.

Gozo quando a imagem emprenha o verbo para se procriar em Times New Roman, como se dominasse o formão que fez de um tronco, o capoeirista, de Escravo; e, de um paralelepípedo, a cabeça tridimensional, de Marcelo Amarelo. Escrever é lírico em Marcos Ferreira, militância em Caio César Muniz, tradição em Antônio Francisco, metalinguagem em Aluísio Barros. É o que me cai ao bucho, porque escrevo por função desde quando me entendo por coisa.

Meus suspiros, contudo, estão contados: li há pouco em Walter Benjamim, que “a arte de narrar está em vias de extinção”. Poucos, instigados a fazê-lo, conseguem reproduzir as experiências vivenciadas ou conhecidas por fontes indiretas, a exemplo dos livros. Sendo, no raso e no fundo, o moleque que largou a escola sem aprender a estética da criação verbal, autodidata que nem a fórceps arrancaram das entranhas da burrice, sinto-me a prumo da desinvenção.

Tivesse herdado de meu avô! Aí, sim, meu avô era “o narrador”. Recriava-se no raciocínio veloz. Narrava! Todos parados, ouvindo. Era Leskov para Benjamim, à vontade no tempo, no espaço. Conheceu o mundo e o mundo nunca lhe foi maior que a aldeia que o viu nascer, crecer, finar-se. Por isso, desvendava universos nas ruelas provincianas, na memória coletiva qual Halbwachs, e sua palavra era a convergência das palavras latentes nos sem-rosto da multidão.

Mas só trago no sangue, que falo de mim ao dizer dos outros, tendo tanto de todos quanto a multidão que sou, na esperança de existir num corpo metalinguístico disforme onde o suor não apodreça a alma. E atenção: desconheço quantos leitores há do lado de lá, se há. Escrevo como me digo aqui, conversando com esse e aquele, cara a cara, na linha melódica dos meninos Sabiás do Rabo da Gata, somente para você, às margens da prosa enlatada dos eruditos.

Fonemas engarrafados, tudo bem. Até bebo. Depois da terceira dose de modernidade líquida, sem gelo, até Zygmunt Bauman tem argumentos sólidos para descrever o caráter estático da sobriedade acadêmica, túmulo do discurso, da memória, da identidade, do enunciado, da enunciação e do infeliz que atravessa a nado o oceano de orações subordinadas e morre na praia ao saber que narrativa de gente de mermo-mermo não molha a goela do doutor.