sábado, 18 de maio de 2013

Questão de estética



Meus avós paternos mudaram-se para Natal na década de 1960, a fim de acompanhar os filhos que já se encontravam por lá, estudando. Moraram na Deodoro e, por fim, na Cônego Leão Fernandes, logradouros coincidentemente transversais da rua Mossoró.

O velho se chamava Jerônymo Lahyre de Mello Rosado. Farmacêutico e inspetor de ensino, além de boêmio inveterado, tinha vastos conhecimentos gerais e uma memória prodigiosa. No aniversário de 90 anos, três antes de nos deixar, recitou poemas de Augusto dos Anjos e explicou as declinações do Latim. Tranquilo, conciliador, era dono de um senso de humor singularíssimo, entre a gaiatice e a ingenuidade.

A jovem atendia pelo nome de Francisca Gurgel da Frota Rosado. Dona de casa, dedicou dias e noites numa máquina de costura para ajudar a garantir a educação dos filhos. Nasceu em Pau dos Ferros e lamentava-se por não conhecer a própria terra, de onde saiu criança. Braba, austera, talentosa, assisti-a ministrar cursos de pintura de vitrais - até pintei uma arara sob sua orientação - e de congelamento de alimentos, coisa inovadora no Rio Grande do Norte da época. Deixou-nos aos 87.

Faz algumas semanas, conversei sobre os dois com Ernani Rosado, logo após receber do primo uma joia de família, da qual me nomeou guardião vitalício: o caderno original dos poemas manuscritos por Jerônimo Rosado Filho, avô de Ernani, meu bisavô, acompanhado da obrigação de romper seu ineditismo, missão a ser brevemente cumprida.

Rosadinho, só para ilustrar, foi o primeiro dos 21 "numerados" de Seu Rosado, embora não tenha recebido um número por nome. Médico humanitário, poeta, colaborador de vários jornais, autor da tese "Da Bacilemia", morreu no verdor dos 30 anos.

Disse-me Ernani, na mesma oportunidade em que me designou curador da obra, que, ao se mudar da Deodoro para a Cônego Leão Fernandes, dona Francisca plantou várias samambaias em jarros e xaxins.

As plantas eram tratadas a pão de ló - sol, adubo, água fresca -, mas não se desenvolviam nem por cem e uma cocada, enquanto as da vizinha, embora sem cuidados, eram enormes, pomposas, com aqueles galhos viçosos que pareciam "trançados de cordas", fazendo jus à origem tupi de sua denominação: çama-mbai.

Certa feita, à mesa do jantar, família reunida, ela desabafou. Disse, um muito amargurada, desconhecer por qual motivo suas "pteridófitas" não respondiam ao tratamento, enquanto as da casa ao lado só faltavam falar.

Eis que o velho Lahyre, meio sem jeito, fez uma inesperada confissão e pôs fim ao mistério. Quando as samambaias começavam a crescer, para impedi-las de ultrapassar a circunferência dos jarros, ele, na melhor intenção de agradar à mulher, passava-lhes a faca, por "questão de estética".

Moral da história: o gosto, já dizia Edgar Allan Poe, é o único juiz da beleza.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

O sonho



O sonho que me habita a cada instante,
Não faz muito, vestia carne e osso,
Um menino sonhando ser gigante,
Sem perceber que já era um colosso.

Passamos longas noites nas estradas,
Tangendo mil rebanhos pra Morfeu;
Varamos juntos tantas madrugadas,
Esperando a manhã que não nasceu.

O visionário alegre e mais amado,
Motivo do meu grande desatino,
Dormiu cedo num berço iluminado.

Certo de não bastarem sonhos vãos,
Arrebatou as rédeas do destino
E se fez sonho pelas próprias mãos.