sábado, 16 de agosto de 2014

UMA CERVEJA NO INFERNO

CONTO EM VERSO NO ESTILO REALISTA MENTIROSO


Errada noite,
o cara sai de casa
com a melhor intenção
de beber um puro malte
no lugar de sempre.

A rua interditada,
no entanto,
o faz descer no lugar errado,
uma bodega bonita,
pomposa,
chique,
cheia de mentes vazias,
entretanto felizes,
gritando:
- Gooool!
- Goooooool!
- Gooooooooooool!

O garçom, concentrado na TV
de sei lá quantas mil polegadas,
serve-lhe um chopp
que não foi pedido,
e com colarinho.

- Três centímetros, diz ele,
apresentando
indicador, anelar e médio
como base de mira
para o olho direito
vidrado na tulipa.

Para não ser grosseiro,
o inocente bebe,
corneando o velho bar,
o velho uísque.

Pior:
ele sente prazer
naquela atitude
abjeta.

Espuma viscosa,
líquido suave,
copo cheio de curvas
sinuosas.

Trai uma!
Vira! Vira! Vira!

Trai duas!
Vira! Vira! Vira!

Trai três!
Virou!

Até que a coisa o enche
e o ameaça de ressaca
apontando-lhe
contra as paredes da garganta
um gosto de guarda-chuva
no final do gole.

O sujeito se levanta irritado,
pois não funciona sob pressão,
mija a primeira,
mija a segunda,
mija a terceira
e percebe
que traição é bala trocada.

Sabe a lombra do pau e do machado?
Pois é,
O risco de um...
O risco do outro...
Coisa e tal.

Traído uma...
Vira? Vira? Vira?

Traído duas...
Vira; vira; vira.

Traído três...
Virou.

Sem contar a humilhante
insurgência de arrotos
e conturbações intestinais.

Imagina só,
boêmio inveterado,
passado na tampa da garrafa,
fodido e malpago
por uma bebidazinha
fermentada
que não amadureceu
porque nunca
tinha visto
um carvalho de verdade
pela frente.

Envergonhado,
caído na real,
o indivíduo
junta os cacos de dignidade
que lhe restam
e chama o garçom
cujo nome desconhece.

Bar novo,
bebida nova,
sabe como é.

- Amigo, dose dupla de Glenfiddich, por favor.

- Que diabo é isso? O senhor me respeite ou chamo o Gordinho da Mercatto.

- Tudo bem, tudo bem. Rainha dupla, pode ser?

- Evidentemente.

O cara bebe devagar
esfregando a língua grossa
no céu da boca,
até lembrar o mínimo aceitável
aquele gosto de cevada
dos seiscentos papafigos.

Parece decifrar
o que Rimbaud quis dizer
com a malcontada
de “Uma cerveja no inferno”.

Sofreu pra cacete
e deixou
de graça
a lição dos seus cornos:
boêmio de verdade
deve ser fiel aos seus bares
e ao que bebe,
mesmo diante
das maiores tentações
ou meros imprevistos.

Contudo, se é de
vez em quando
trair as convicções etílicas,
no copo,
na garrafa
ou no caneco,
para desanuviar,
traia,
desde que o faça com algo
que esfole o esôfago,
mas não o desmoralize
nem o mate de dor de cabeça.

- Outra dupla de Rainha,
pela caridade.

sábado, 2 de agosto de 2014

CARTA A CHICO DE NECO CARTEIRO


Mossoró-RN, 31 de julho de 2014.

Chico, meu bom,
não vou tratá-lo de “senhor”, pois, comparar sua jovialidade de 81 anos com meus 42 de artrite, o deixaria em desvantagem. Além do que, “Seu Chico”, “Doutor Chico”, “ilustríssimo” pra lá, “ilustríssimo” pra cá, nada disso combina com o homem brilhantemente simples que conheço e admiro.
Pensei em lhe enviar estas mal traçadas pelo método tradicional, em homenagem à memória de seu pai, Neco Carteiro, a quem não tenho o privilégio de haver conhecido, mas que foi, sem dúvida, cidadão exemplar, tirando pelo caráter dos filhos e pelo gesto descrito no livro lançado hoje.
Ventilei a hipótese por me lembrar de Celso da Silveira, quase meu vizinho do Tirol, em Natal, ele morador da Alexandrino de Alencar e eu da Joaquim Inácio. Quando tinha algo a dizer-me, o poeta metia-se no táxi, descia aos Correios da Ribeira e postava uma carta.
Contudo, embora minha situação seja cômoda, pois os Correios ficam a poucos metros da redação do O Mossoroense, a preguiça às vezes vence o romantismo, de modo que a entrego em mãos e já vou perguntando:
Homem, pra que você fez isso?
Não me refiro aos motivos da obra nem ao grito de Telé naquele dia fatídico, “na hora trágica do infortúnio marcada no claro relógio de Deus pelo dedo escuro do diabo”, como diz Humberto de Campos na Carta a um Detento, extraída da coletânea de contos Sombras que Sofrem.
O que desejo saber é por qual motivo você escolheu o menor dos jornalistas da província que não tem jornalistas, não tem poetas, não tem prosadores, não tem... não tem... e não tem... para ler e comentar PERDÃO antes dos demais.
Amigo velho, não sou cabra afeito a rodeios e salamaleques. Por isso, vou logo dizendo, doa a quem doer: você é autor de uma das melhores narrativas que li nos últimos anos.
Seu livro, Chico, é brilhante. O objetivo, pedir perdão, como lhe disse o ex-deputado João Faustino, “é tão nobre quanto perdoar”.
João perdoou os que o prenderam injustamente, além dos responsáveis por coisas mais graves; você implora perdão por um arroubo juvenil de consequências fatais que lhe rendeu alguns anos na cadeia e seis décadas de remorso, prisão invisível pior do que aquela imposta como pagamento dos erros perante os homens.
Não sei, para ser sincero, qual o ato mais nobre e doloroso: aquiescer a quem se nos apresenta arrependido ou arregaçar o peito e expor a ferida aberta, sangrando, num doloroso e comovente apelo:
“... não me neguem o sagrado direito de pedir clemência para o meu arrependimento, que me acompanha há 60 anos”.
Porra, Chico, assim você acaba comigo.
Chorei copiosamente, a ponto de me perguntarem se estava passando mal. E não foi só nesse trecho. A sinceridade nua e crua do relato, a pureza da intenção, que, ao contrário do verso de Fado Tropical, do outro Chico, o Buarque, não guarda distância do gesto, deixa qualquer vivente comovido.
Pedir perdão é phoda, com PH. Aposto que neste recinto em que lhe entrego esta carta, a começar de mim, cada pessoa deve a si conceder a alguém a oportunidade de perdoá-la.
Mas espere.
Sua obra, Chico de Neco Carteiro, é tocante, nem de longe piegas, grave ou pesada. Traz, a exemplo das quatro anteriores, a leveza do estilo, a linguagem fácil, cativante, envolvente.
Basta pisar na primeira linha, incluindo as apreciações de Aécio Cândido, Clauder Arcanjo e Dom Marcelo Almeida, para o caboclo ser arrastado pelos sentidos até o ponto final. Não digo de um só fôlego, porque, a cada capítulo, respiramos em ritmo diferente.
Reencontrei muita gente conhecida, revisitei tantas ruas e lugares de Mossoró e Areia Branca. Meu avô morto, tão vivo, pude ouvir-lhe a voz na conversa com o tenente Revoredo.
A narração é fidedigna, atesto. Ouvi-a do próprio Vingt Rosado, que, ante a negativa do delegado em soltar o filho de um seu adversário político, detido por causa de uma briga, disse à autoridade: “Façamos o seguinte, tranque-me na cela. Durmo lá com o rapaz”.
Tem outra coisa. Não sei se digo. Digo. Não digo.
Assim, imaginando os outros prováveis leitores dos comentários que lhe endereço, sinto receio de contar. De qualquer modo, lá vai, tape bem os olhos quem não quiser ler e os ouvidos quem for sensível para escutar:  Chico, criatura, os detalhes daquelas trepadas no Alto do Louvor deixam qualquer um de pau duro, mesmo os que já não dispõem das armas da traição.
Como ela... digo... como era o nome dela? Margarida?
Homem, pra que você fez isso?
Qualquer dia, se não for pedir muito, quero instruções sobre a arte de se cantar uma rapariga e obter sucesso.
Brincadeiras à parte, Chico, parabéns por haver produzido, na catarse, uma das mais pungentes obras da memorialística potiguar, com ricos detalhes sobre as histórias de nossas respectivas cidades.
Anota aí: dentro em breve, PERDÃO, para honra da Sarau das Letras e dos que o admiram, será referência na literatura do Rio Grande do Norte, pela mistura perfeita entre o humano e o literário neste que seria um romance, não tratasse de personagens e fatos reais.
Quando alguém perguntar, responderei orgulhoso, Chico é meu amigo, li todos os livros dele. PERDÃO, com sabor diferente, por me chegar dedicado antes do lançamento, com as seguintes palavras:

“Para o amigo Cid.
PERDÃO refere-se a uma tragédia que comina com esse pedido.
Um afetuoso abraço.
C.N.N – Chico de Neco Carteiro
Moss. 25.07.14”

Você é o cara, Chico!
Poucos conseguem fazer arte das tragédias pessoais, sem se autocomiserar, sem escorregar na lama dos lugares-comuns, das frases piegas e hipócritas, em especial quando o passado lateja no juízo, dá sopapos nos ouvidos e socos no estômago.
Se não o perdoarem, e torço para que o façam, compreenda-os, mas não deixe de se perdoar, pois sua parte está cumprida, sua pena íntima acaba aqui, honrada e respeitosamente.
Ouça o conselho de Manuel Bandeira, vire a página e feche o livro, que, a partir de agora, não tem motivo nenhum de pranto.
Sem mais, receba o abraço de seu admirador,


Cid Augusto