segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Sobre os atos em Brasília e o crime de terrorismo

Não costumo retrucar comentários feitos em meus perfis de redes sociais. Em regra, apenas curto o que me escrevem, seja elogio ou crítica, concorde ou não concorde com o que está posto. Esse é o meu modo de agradecer pelas participações e de deixar todo mundo bastante à vontade.

Hoje, entretanto, sinto-me na obrigação de fazer alguns esclarecimentos, e começo afirmando que a postagem objeto deste texto não tem, nem de longe, o desejo de minimizar a gravidade dos atos criminosos praticados contra a democracia brasileira nesse domingo.


Postagem que deu origem a este texto.

Os golpistas responsáveis pela depredação dos prédios dos Três Poderes devem ser investigados pela polícia, denunciados após análise do Ministério Público e, se a Justiça assim o entender, condenados. Mas dentro do devido processo legal, com direito a contraditório e ampla defesa, mesmo que esses sejam mecanismos da democracia, regime que os ditos vândalos abominam.

Os rigores da lei devem ser impostos a todo aquele que, de qualquer modo, concorreu para as transgressões apuradas, na medida de sua culpabilidade, como determina o art. 29 do Código Penal (CP). Isso, logicamente, inclui coautores (executores diretos) e partícipes (sujeitos que ajudaram sem aparecer).

Em publicação anterior, enumerei uma série de delitos que podem estar configurados: dano qualificado (art. 163, parágrafo único, inciso I e III, do CP), incitação ao crime (art. 286, caput e § 1º, do CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M do CP).

Se o noticiário estiver correto, alguns baderneiros podem ser responsabilizados, ainda, por porte ilegal de arma de fogo (arts. 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento), furto qualificado (art. 155, parágrafo 4º, inciso I e IV, do CP), lesão corporal (art. 129 do CP), associação criminosa (art. 288) e maus tratos a animais (art. 32 da Lei nº 9.605/1998).

Com o aprofundamento das investigações, quem sabe, as lideranças ocultas arquem com acusações de organização criminosa, nos termos da Lei nº 12.850/2013, vindo a ser constatada a existência de estrutura ordenada e divisão de tarefas, como uma “empresa antidemocrática”, com atuação em bloqueios de estradas, manifestações nos quartéis e atos violentos na capital da República.

O “patriota cagão”, merecedor de destaque especial, por representar a índole do movimento antidemocrático, pode ser responsabilizado por ato obsceno (art. 233 do CP), além dos atos de vandalismo eventualmente apurados contra ele.

O crime de terrorismo, no entanto, não me parece configurado, embora leia na Folha de S.Paulo a manchete “Presidentes dos três Poderes chamam atos de terroristas e pregam união”.

O jornal, a propósito, chegou a divulgar que cerca de 1.200 bolsonaristas que se recusaram a sair do acampamento montado nas imediações do QG do Exército seriam autuados em flagrante por terrorismo e abolição violenta da democracia. A matéria, contudo, parece ter saído do ar. “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, até onde aprendi na faculdade de direito, é desobediência (art. 330 do CP). 

Na perspectiva semântica, tudo bem. Concordo: são terroristas!

Embaso tal afirmação em simples consulta aos dicionários. O Houaiss define terrorista como “pessoa partidária do terrorismo ou que pratica atos de terrorismo”; enquanto o Michaelis registra terrorismo como “atitude de intolerância por parte de indivíduo ou grupo de indivíduos com aqueles que não compartilham suas convicções políticas, artísticas, religiosas etc”.

O problema é que, na perspectiva do art. 2º da Lei Antiterrorismo – Lei nº 13.260/2016 –, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, em quem votei duas vezes, “terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

A propósito, o citado art. 2º é o que se chama de norma penal explicativa, espécie que não serve para proibir condutas nem estabelecer penalidades, limitando-se a esclarecer conceitos necessários à aplicação de determinado conteúdo jurídico. Pois bem ou pois mal, a exata interpretação desse dispositivo define se a Lei Antiterrorismo se aplica ou não ao caso concreto. 

Nesse processo analítico, por mais repulsivo que seja o ato criminoso, é inviável extrair uma expressão do contexto da norma. Assim, o substantivo “religião” não pode ser isolado para abarcar o lema fascistóide “Deus, pátria e família” nem mesmo as falações “em línguas” ou as orações ensaiadas entre os destroços.

Para facilitar a compreensão, prometendo fugir do tecnicismo jurídico, separarei o art. 2º da Lei nº 13.260/2016 em quatro partes. Vamos ler juntos? 

“[1] O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, [2] por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, [3] quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, [4] expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.

Percebe qual trecho não se enquadra dos atos nefastos praticados pelos radicais bolsonaristas, em Brasília? Se não percebeu eu digo: a [2] “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, que são requisitos causais, motivos ensejadores da prática delituosa.

Não confunda. Uma coisa é a religião estar de algum modo presente nos discursos de vários dos que atacaram os Três Poderes, outra é o ataque ser motivado por discriminação ou preconceito religioso.

Por essas razões, desculpo-me pela interferência no debate e reafirmo: os “patriotas” que depredaram os Três Poderes não são terroristas à luz do direito penal, são golpistas perigosos que devem responder criminalmente pelo que fizeram, nos limites e com as garantias da Lei, em nome da democracia.


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