sábado, 8 de julho de 2023

O piano

Não toco nem tambor. Quando jogava capoeira pelas praças de Mossoró, final dos anos 1980, início dos 90, sequer batia palmas para não tirar berimbaus e atabaques do ritmo. Fase boa, apesar do perigo de ser preso, visto que algumas autoridades, infectadas pelo racismo estrutural, confundiam o esporte com a vadiagem.

Por contradição, ironia ou castigo cósmico, sempre fui apaixonado por música. Um ouvinte chatíssimo, igual a torcedor que só conhece, no futebol, as faces quadradas da bola, mas que esculhamba técnico, jogadores, árbitro, bandeirinhas e até gandula, no auge da disputa. Menos, menos. Exagero! Eu não sou tanto.

Exatamente agora, rascunhando no bloco de notas do celular este texto que se pretende crônica, assisto a apresentações de pianistas de várias partes do mundo, graças ao YouTube e ao bom gosto de papai. Polônia, Japão, Brasil, EUA, a linguagem da harmonia é universal e não conhece a barreira semântica da palavra.

No ramo, contudo, não passo de apologista. Apologista razoável, dado ao privilégio de ouvir, ao longo de quase 52 anos, Laíre Rosado ao piano Schumann em que também praticaram o pai e os irmãos dele. Foi adquirido no Rio de Janeiro, transportado em barco até Areia Branca, onde se contratou um caminhão de frete.

Até tentei ser pianista recebendo aulas do magistral Ari Duarte, na casa que dava de ombros com o prédio da Gazeta do Oeste, depois incorporada pelo jornal de Canindé Queiroz e Maria Emília. A mente inquieta, todavia, não me permitiu o domínio da arte. Nem piano, nem violão, nem flauta, nem gaita. Nem nada.

Por isso, fico aqui esfolando verbos, adjetivos, substantivos, arrancando-lhes tripas e tendões, na ilusão de construir uma lira milagrosa para cantar, na disritmia da prosa, a alegria de ouvir música com papai, que só não está tocando porque se recupera de uma cirurgia. “Esforço zero!”, ordenaram os médicos do médico.

Em complemento, amplio o registro de memórias e o repertório de histórias. Perguntei-lhe, por exemplo, sobre os pianos da Mossoró nos idos de 1960, lembrando-me de Brasília Carlos Ferreira, do Sindicato do Garrancho. Diz ela, havia uns 100 na cidade, no início do século XX, em demonstração de “cosmopolitismo”.

Doutor Laíre respondeu contando que Delfino Freire, comerciante rico, primeiro a viajar em carro motorizado de Mossoró a Tibau, levava o piano para a casa de veraneio todo ano, de carroça. No rastro, alguém contratado a peso de ouro para ajustar o bichinho, que, pelo transporte, chegava desafinado à esquina do mar.



A narrativa me faz lembrar Dulce Escóssia, filha de João da Escóssia, que, à época de Delfino, dividia-se entre os ofícios de costureira e de pianista. Dulce executava a trilha sonora dos filmes exibidos no Glória, no glorioso tempo do cinema mudo, segundo me contaram as suas três meninas, Lucinha, Corália e Honorina.

Trocadilho mais idiota, minha Nossa Senhora das Bicicletas: “Glória, glorioso”! Sinal de que desafino até no texto e de que o ponto final se aproxima cobrando-me respeito e silêncio. Peço desculpas. O único ritmo que me restava, o das teclas da máquina de escrever, foi-se na transição da Olivetti ao microcomputador.

A exemplo desses engenhos datilográficos, aquele piano de madeira, cordas metálicas e martelinhos percutores, com pedais para alongar as notas, parece restrito a escolas, museus, profissionais e saudosistas, sem mencionar o caso dos snobes que mantêm o móvel na sala para impressionar visitas e ilustrar fotografias.

Aqui resiste o Schumann vertical de meu avô, graças à paixão de meu pai pela música; e resiste meu pai, com sua musicalidade discreta, graças ao anel viário que lhe construíram no peito, com quatro pontes mágicas – duas mamárias, duas coronarianas. Que privilégio, esse meu, mesmo sem tocar um instrumento.


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