Texto publicado na revista "Nós, do RN"
Nasceu João, em Mossoró. Nome usual numa cidade
aparentemente comum do sertão do Rio Grande do Norte. Poderia ter sido batizado
com os sobrenomes do pai, Jeremias da Rocha Nogueira. Talvez algum de sua mãe,
Izabel Benigna da Cunha Viana. Mas, como se diz para lá da Reta Tabajara,
Mossoró é outro país, o “País de Mossoró”, e João, que nem teve batismo católico,
internacionalizou-se. Virou Escóssia.
João da Escóssia Nogueira, com dois “esses” no
costume da era pseudoetimológica da língua portuguesa, veio ao mundo aos 27 de
maio de 1873, durante profunda crise, digamos, político-clérigo-maçônica. Nada
específico de sua terra quente e seca, coisa mesmo de âmbito nacional, que ali,
onde chove bala e Lampião leva cacete há 90 anos, toda rusga tem contorno
ideológico e alcança proporções de batalha.
No centro da polêmica, em posições antagônicas, o
vigário Antônio Joaquim Rodrigues, líder conservador, deitando falação no
púlpito da Catedral de Santa Luzia; e Jeremias, um dos chefes liberais,
retorquindo no O Mossoroense, jornal que fundou com José Damião de Sousa Melo e
Ricardo Vieira do Couto, aos 17 de outubro de 1872, sob a denominação: “Semanário,
político, comercial, noticioso e antijesuítico”.
Para completar, o jornalista descrito pelo
historiador Raimundo Nonato da Silva como o “Marat das ruas de Mossoró”, por
seu estilo “incendiário”, que anunciava a morte do poder dos papas e o fim da
“bárbara Roma”, era maçom integrante do grupo incumbido de erguer, naquele
chão, as colunas da Loja Maçônica 24 de Junho, inaugurada justa e perfeitamente
nessa data, no ano de nascimento do menino.
Batizar o infante na Igreja? Só se o genitor e o padrinho,
Targino Nogueira, renunciassem à Maçonaria, primeira instância do inferno
depois do Partido Liberal, na ótica do vigário jesuíta. Jeremias reagiu e, aberto
o templo dos pedreiros livres, batizou-a no simbolismo em homenagem a São João
da Escóssia, então considerado patrono do rito “Escocês Antigo e Aceito”. Por
isso, João da Escóssia Nogueira.
Hoje, o menino pagão nomeia Loja Maçônica e avenida
importante, que liga o Rabo da Gata aos condomínios de luxo dos extremos da
Nova Betânia. Quem passa, além da associação à política partidária, pela
militância de vários Escóssias, desde os anos 1960, talvez nem imagine
tratar-se da homenagem a um gênio: artista plástico, autor teatral, cenarista, repórter,
publicitário, xilógrafo, desenhista, tipógrafo.
Fundou o jornal O Echo (lê-se O Eco), em 1901.
Reabriu, em 1902, o periódico fundado pelo pai dele, trazendo páginas
ilustradas com xilogravuras, cujas matrizes João talhava em madeira, utilizando
um canivete. Eram paisagens, caricaturas, crítica social, sátira política, ilustrações
comerciais e cenas urbanas, como um assassinato na vila de Grossos, em 1903, e
a famosa explosão do Pax no céu de Paris, meses antes.
Introduziu a imagem na imprensa potiguar e foi também
um dos pioneiros na publicidade, conclusão esta a que chego a partir das aulas de
Cassiano Arruda Câmara, de quem guardo o privilégio de haver sido aluno no
curso de jornalismo da UFRN. Segundo narrava, Toulouse-Lautrec revolucionou a
ilustração de cartazes para os cabarés franceses, no final do Século XIX, época
em que João estava em plena atividade.
O Atelier Escóssia, de sua propriedade, misto de
tipografia e loja de variedades, além das ilustrações para O Mossoroense, e o
próprio jornal, produzia cartazes destinados a empresas e eventos, rótulos de
produtos e remédios, entre os quais Antinevrálgico Rosado (para dor), Viperina
(antiofídico) e Peitoral de Joatonca (contra tosse). Seu portfólio oferecia outros
itens, como cartões e até um laboratório fotográfico.
Perdoem-me o bairrismo – o mossoroísmo! –, mas João
é maior que Lautrec, mesmo sem art
nouveau. Isso, comparando oportunidades de quem nasceu no semiárido
nordestino, à “margem setentrional de um rio seco”, na descrição de Henry Koester
traduzida por Cascudo; e na capital cultural do mundo, na Belle Époque, expressão que me remete a Tarcísio Gurgel, professor com
quem tanto aprendi. E aprendo.
Anchieta
Fernandes, em Desenhistas Potiguares, afirma que João da Escóssia
Nogueira apresentou o gênero caricatura ao Estado, com “virtuosismo próprio”
que mesclava o clássico ao seu espaço social. De tanto esmero, os desenhos, de
certo modo influenciados por revistas da época – O Malho, Careta, Fon-Fon,
Ilustração Brasileira –, surgiam “plenas de movimento e plasticidade”.
Para
Jeová Franklin, jornalista do O Povo, de Fortaleza-CE, característica maior
de João da Escóssia “era a precisão, aliada à leveza do traço, dificilmente encontradas
em imagens de madeira”. Chegava, segundo diz, “a dar movimento às figuras e a
destacar planos com a técnica do sombreamento, como se em lugar do canivete,
estivesse trabalhando com bico-de-pena sobre o papel”.
Na análise do escritor Jayme Hipólito
Dantas, esboçava “o senso da observação dos detalhes mais diminutos. Parecia
ser ágil, sutil e penetrante”. Era “Uma vocação, sem dúvida, de puro
retratista, que a província, na pequenez das suas proporções, no incolor da sua
vida no princípio do século, não pôde devidamente valorizar”, desabafa o autor de
Aprendiz de Camelô e Estórias Gerais.
Registro, por dever de honestidade e de
ofício, a desconfiança do grande pesquisador Alcides Sales, que publicou artigo
sobre a história da xilogravura norte-rio-grandense, na segunda edição da
revista Galante, atribuindo ao jornal A República, a primazia no uso de
imagens, em 1889. Assevera, entretanto, que, devido à falta de informações, não
poderia negar esse feito ao mossoroense.
João da Escóssia morreu aos 14 de dezembro
de 1919. Parada cardíaca, sugere o noticiário da época. Produziu pouco no fim
de sua breve existência, em razão da doença reumática que lhe tirou os
movimentos das pernas e, não raro, causava-lhe inchaços e dores. Na mão direita,
em especial, pelo esforço repetitivo no entralhe de centenas de xilogravuras. A
maioria perdida, infelizmente.
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