“Eu quero te comer”,
disse a japonesinha em português. “Eu quero te comer também”, respondeu o
interlocutor, enquanto apertavam-se as mãos e se curvavam em respeitosa
reverência. Era a primeira vez que se viam, apresentados por um amigo comum de
São Paulo, no ponto onde esperavam o ônibus que os levaria de Brighton às Seven
Sisters, famosas montanhas de giz de East Sussex, no Sul da Inglaterra.
Nem estava tão gelado.
Nem estava chovendo. Dia raro para um janeiro britânico. Se o Sol não fosse
decorativo, se não pudesse ser encarado a olho nu, daria para tirar jaqueta,
luvas, gorro e sair batendo perna por aí, sem as ceroulas por debaixo da calça
jeans. As meias grossas. Tênis em vez de botas. Sem rumo. Se bem que o cenário
tornava todo sacrifício confortável. A companhia de olhos apertados, idem.
O rapaz olhava a moça
cima a baixo como quem chupa juízo. A moça olhava o rapaz baixo a cima como
quem lambe pensamentos cabeludos. Sorriam, embora não se encontrassem nas
retinas. Talvez por vergonha, apesar da suposta objetividade das palavras
introdutórias. Aqui e acolá arrastavam-se em sotaques sobre o inglês de lugar
nenhum. Dava pro gasto, para se entenderem, e isso bastava.
Na primeira fila do
primeiro andar do ônibus, a vista era só deslumbre. O mar quando dava o ar da
graça arregalava olhos azuis atiçando a maresia. Imensos! Contraponto aos olhos
verdes da terra derramada em campos largos que nem os da fazenda do avô sertanejo
nos raros milagres do inverno. A civilização agarrava-se a pequenas cidades
góticas, que pareciam gritar algo nonsense,
algo Lewis Carroll.
O veículo parou no
parque. O rapaz rústico, lorde pelas circunstâncias, porque o frio deixa
qualquer pessoa elegante, ofereceu o ombro como apoio na descida da escadaria.
A moça tímida, aquiesceu com o recato oriental em gestos miúdos. Caminharam.
Pastos. Lagos. Sobe. Desce. Sete irmãs surgem alvas instigando com inquietante
verticalidade o infinito horizontal do oceano. Quanto há tântrico, santo Deus!
Escancharam-se na
cacunda de uma delas, que nem se deu conta, e contemplaram a atração do abismo
até que o cansaço e a vertigem venceram e os fizeram recuar, ofegantes, ao
abrigo da árvore magricela de cabelos penteados na ventania. Então, pelo clima
imaginário, pelo cenário, ninguém sequer ao longe, escapuliu a pergunta
fatídica: “E aquela coisa de ‘eu quero te comer’, sabes o que significa?”.
Tivesse a boca
engolido a dúvida, tivesse ouvidos de mercador, tivesse estrangulado a ternura
entre as pernas, talvez não acusasse o golpe. “Sim, claro que sei” – vem a
resposta de sílabas realçadas no acento preciso da lâmina samurai – “indaguei
‘como vai você’, no seu idioma... Não foi?”. Aí, man, voltaram para casa, a menina ainda ingênua e o menino que não teve
a coragem de lhe roubar a inocência.
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