sábado, 17 de outubro de 2015

EU QUERO TE COMER



“Eu quero te comer”, disse a japonesinha em português. “Eu quero te comer também”, respondeu o interlocutor, enquanto apertavam-se as mãos e se curvavam em respeitosa reverência. Era a primeira vez que se viam, apresentados por um amigo comum de São Paulo, no ponto onde esperavam o ônibus que os levaria de Brighton às Seven Sisters, famosas montanhas de giz de East Sussex, no Sul da Inglaterra.

Nem estava tão gelado. Nem estava chovendo. Dia raro para um janeiro britânico. Se o Sol não fosse decorativo, se não pudesse ser encarado a olho nu, daria para tirar jaqueta, luvas, gorro e sair batendo perna por aí, sem as ceroulas por debaixo da calça jeans. As meias grossas. Tênis em vez de botas. Sem rumo. Se bem que o cenário tornava todo sacrifício confortável. A companhia de olhos apertados, idem.

O rapaz olhava a moça cima a baixo como quem chupa juízo. A moça olhava o rapaz baixo a cima como quem lambe pensamentos cabeludos. Sorriam, embora não se encontrassem nas retinas. Talvez por vergonha, apesar da suposta objetividade das palavras introdutórias. Aqui e acolá arrastavam-se em sotaques sobre o inglês de lugar nenhum. Dava pro gasto, para se entenderem, e isso bastava.   

Na primeira fila do primeiro andar do ônibus, a vista era só deslumbre. O mar quando dava o ar da graça arregalava olhos azuis atiçando a maresia. Imensos! Contraponto aos olhos verdes da terra derramada em campos largos que nem os da fazenda do avô sertanejo nos raros milagres do inverno. A civilização agarrava-se a pequenas cidades góticas, que pareciam gritar algo nonsense, algo Lewis Carroll.

O veículo parou no parque. O rapaz rústico, lorde pelas circunstâncias, porque o frio deixa qualquer pessoa elegante, ofereceu o ombro como apoio na descida da escadaria. A moça tímida, aquiesceu com o recato oriental em gestos miúdos. Caminharam. Pastos. Lagos. Sobe. Desce. Sete irmãs surgem alvas instigando com inquietante verticalidade o infinito horizontal do oceano. Quanto há tântrico, santo Deus!

Escancharam-se na cacunda de uma delas, que nem se deu conta, e contemplaram a atração do abismo até que o cansaço e a vertigem venceram e os fizeram recuar, ofegantes, ao abrigo da árvore magricela de cabelos penteados na ventania. Então, pelo clima imaginário, pelo cenário, ninguém sequer ao longe, escapuliu a pergunta fatídica: “E aquela coisa de ‘eu quero te comer’, sabes o que significa?”.

Tivesse a boca engolido a dúvida, tivesse ouvidos de mercador, tivesse estrangulado a ternura entre as pernas, talvez não acusasse o golpe. “Sim, claro que sei” – vem a resposta de sílabas realçadas no acento preciso da lâmina samurai – “indaguei ‘como vai você’, no seu idioma... Não foi?”. Aí, man, voltaram para casa, a menina ainda ingênua e o menino que não teve a coragem de lhe roubar a inocência.
 

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