1990. Redação do jornal à
meia-luz. Nenhum outro jornalista ao meio-dia.
O velho repórter baixa a cabeça
repousando a fronte esquerda na mão esquerda espalmada. Na direita, o lápis,
objeto que há muito não manuseava, treme com a ponta sobre o bloco de notas.
Por que não a Olivetti?
De repente, começam a cair, gota
a gota, estas palavras subscritas por espírito qualquer atormentado na prisão
de um corpo sem luz que não atende aos próprios anseios de eternidade.
Descreve a cena.
Cala.
O grafite, nervoso, atormenta os
nervos da folha cuspindo grama, flores, coqueiros, uma casinha, pássaros, o
rio, crianças em traços, tudo preto no branco.
Talvez seja tímido, afora
anônimo, ou pense ser inútil dar novas aos vivos no lombo de um cavalo ateu.
“Diga que a amo...”, deixa
escapar, sem, no entanto, estabelecer a destinatária do que parece ato falho na
perfeição da arte de além e de aquém, onde, segundo dizem, as palavras são
castiças e certeiras.
“... E que a vejo cá dos meus
infernos...”, prossegue em letra tensa, repuxada com a característica das almas
penadas que vagam por aí, bar em bar, na busca por iluminações poéticas nos olhos
das putas.
Cala.
Retoma: “... Lembre-a daquele janeiro,
quando se mostrou gótica numa imagem digital ainda por ser inventada...”.
O médium, mesmo sem obrigação,
pensa. Tenta parar.
Quer saber que droga é essa, quem
rompe seu agnosticismo e usa seus talentos secretos para mensagem tão descabida,
mas é arrebatado numa prece decassilábica em versos brancos por outra face da entidade:
“... Deus a proteja e guarde de
minha alma
Que vem das profundezas do meu
corpo...”
“... Deus a proteja e guarde
dos avanços
Dos meus olhos nas frestas do
vestido...”
“... Deus a proteja e guarde
da nudez
Da minha língua morta de
desejo...”.
O lápis cai, a ponta quebra, a
porta se abre sem ninguém entrar, sem humana interferência. Nem dos gatos na
oficina.
Ventania no Vale do Silêncio? Não!
Calafrios.
O indivíduo sai do transe, da
viagem dantesca, e lhe ocorre a tentação de voltar a ser sujeito. Enxerga,
embora turvos, os garranchos atropelando as figuras desconexas e pergunta à
parede incorporada de salitre o que diabos aconteceu para os tantos quantos de
si pensarem em revolução.
Lixo.
Procura o exorcista, que o socorre
numa das mesas do botequim imaginário da Praça do Seresteiro.
Mergulha noutro transe e psicografa
poemas de Baco, sendo este o melhor de todos os seus eus.
Evoé!
Nenhum comentário:
Postar um comentário