domingo, 18 de maio de 2014

MANCHA BRANCA


O fato de eu haver sido candomblecista na adolescência rende ainda comentários preconceituosos quanto àquela escolha, porque, a despeito da Lei Áurea, os grilhões ideológicos persistem nos pulsos e tornozelos de qualquer costume de origem africana. E olhem que sou agnóstico há cerca de 20 anos, o que também não é fácil sustentar numa sociedade onde o cristianismo da boca para fora é majoritário e, às vezes, irascível.

Quando digo qualquer costume, não exagero. Na década de 1990, um parente distante criticou-me duramente porque decidi praticar capoeira: “coisa de vagabundo”! E a ideia não era apenas dele. Lembro-me como se fosse hoje, o dia em que a polícia cercou o grupo do qual eu fazia parte, o Abadá Capoeira, do professor Dody, e nos ameaçou prender se não encerrássemos a apresentação na praça do Mercado Central.

Fiquei indignado e procurei o chefe de polícia autor da “ordem de prisão”, amigo cuja identidade tomo a liberdade de resguardar. Perguntei-lhe o motivo de tudo aquilo, se, além de manifestação cultural e esportiva, capoeira não é crime. A justificativa foi semelhante à crítica do parente, de nome igualmente preservado: “coisa de marginal!”, visão distorcida, traço de racismo que, não se engane, persiste no tempo da Globalização.

Quer prova? Vamos lá, cara-pálida! O Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro ingressou com ação civil pública, mediante representação da Associação Brasileira de Mídia Afro, solicitando a retirada de 15 vídeos do Youtube, em que extremistas de outro credo execram fiéis da umbanda e do candomblé com expressões deploráveis que, acima do ódio gratuito, revelam nível penoso de intolerância e discriminação.

O caso foi parar na 17ª Vara Federal da seção judiciária carioca, na responsabilidade do senhor doutor juiz de direito etc etc etc Eugênio Rosa de Araújo, que negou o pedido do MPF para que o conteúdo seja retirado da Internet, até que se resolva o mérito da questão, utilizando-se, a excelência, de argumentos que extrapolam os limites da razoabilidade necessária ao exercício de um tal livre convencimento do magistrado.

Poderia, como o fez, basear a decisão nos direitos fundamentais a opinião, reunião e religião, e pronto, o que, no meu reles entendimento, já seria absurdo, por ignorar direitos igualmente fundamentais das pessoas difamadas e injuriadas nos vídeos. Até onde se sabe, honra, intimidade, vida privada, livre exercício de cultos, liberdade de consciência e de crença também são valores constitucionalmente assentados e garantidos.

O problema é que o meritíssimo, consciente ou não da carga ideológica e dos reflexos de seu discurso, disse, sem meias palavras, que, a despeito do mau gosto das cenas, não lhes determinaria a exclusão do Youtube, porque são legítimas “manifestações de livre expressão de opinião”, sem descuidar de que “As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões”, conforme a sua análise teológica de urgência.

Não o são, prossegue o juiz, pois “não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado” (sic!). Eu, criatura ignorante de relinchar e distribuir coices ao vento, nascida no sertão de Mossoró, no bucólico e simpático Rabo da Gata, desconhecia a existência de uma definição jurídica para o termo “religião”.

Na doutrina do Aurélio, louvado pai de gente da minha laia, a laia dos burros, insignificante, porém, na jurisdição federal, religião é a “crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do universo, e que como tal deve(m) ser adorada(a) e obedecida(s)”; ou “Qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolva uma posição filosófica, ética, metafísica”. E daí?

Daí, que a concepção do juiz e a realidade semântica que ele se propôs a decifrar nas primeiras linhas do julgado estão desvinculadas. Ao excluir umbanda e candomblé do universo das religiões, o magistrado, a exemplo das pessoas que zombam de quem foi ou é candomblecista e marginalizam a capoeira, revela a mancha branca quase sempre invisível que despreza a herança africana de um povo miscigenado.

A origem da intolerância religiosa é cultural e, em verdade, afeta o mundo. Tenho, contudo, direito de escolher. Tenho direito de ser católico, evangélico, budista, umbandista, candomblecista, muçulmano, hinduísta, testemunha de Jeová, adventista do primeiro ao sétimo dia. Tenho direito de ser agnóstico ou de ser ateu, graças a deus. Só não tenho direito de ofender quem busca respostas por rumos diferentes dos meus.

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