Ouvi de um professor no curso de jornalismo,
que o texto, para sem bom, tem de ser como um soco no estômago: surpreender,
inquietar, intrigar o leitor. Sulla Mino consegue nos envolver de tal modo,
que, do abismo, da queda sem fim, damos de cara com a planície. Segura. E, de
repente, a terra inviolável abre-se no turbilhão de fonemas.
Puxo da memória a primeira
leitura, um conto multimídia, lido por ela com ilustração de alguém cujo nome,
desculpem-me, não recordo. Diferente, inovador. O sotaque carioca emoldurando
as sílabas, o uísque, o copo quebrado, e Alice, menina arteira que adorava ler,
caiu num buraco, contou três ou quatro causos, seduzindo o coelho.
Neste livro autodenominado "rascunho",
"rabisco", guardam-se sorrisos muitos que se dizem poucos, confissões
tantas que nem se contam. Claro, jura-se escuro porque as letras de Sulla são iluminadas
sem renegar a força geradora das sombras, com aquele modo hipnótico de nos
arrastar ao fundo das narrativas, tipo a sereia e o náufrago.
Não vejo Gilka, Augusto dos
Anjos, Cecília Meireles, muito menos Drummond, o Carlos. Neruda? A Pessoa de Lispector?
Vejo Alina, eu, você, a porra do vidro de calmante. Kélia? É um de nós no
pesadelo do amor (im)possível? A roda-gigante, horas por cima, horas por baixo,
aqui e acolá no solo, no horizonte. O espinho, a rosa, corpo caído.
Nutro o maior tesão por ruivas.
Mentira, não tenho preferência, mas Lícia no tango é de lascar. Queria que ela gozasse.
Sulla bota pra moer, o leitor quer e não sabe, sabe e não quer. Ela consegue
enredar o cotidiano numa trama de sentidos. Consegue passear por temas
conhecidos, amor, vida, morte, sem cair na mesmice nem parecer piegas.
A janela sem vistas do "Sexto
Andar", porque "Levaram os olhos e já não se pode ver nada",
abre-se ao som de Beethoven para uma metáfora inquietante da memória, bem como o
"Ritual de Espera" embalado por Ravel. A música, o ritmo, a imagem, o
cheiro, a voz da narradora, a pele arrepiada, tudo, o tempo todo, desafia-nos a
sonhar.
Livro povoado de gente. Cada indivíduo,
desde Lívia e sua carta, Alina, Bebel, Cibele, Leandra, até a moça que não faz
muito desfilava as curvas e os cabelos pelo jardim, tem o livre-arbítrio de
fazer-se história, de modo que, às vezes, parece repetir o dia a dia perante
nossos olhos, como se estivesse bem aqui, contando-se num corpo verbal.
Há anos leitor de Sulla Mino, em
prosa e verso, ainda me surpreendo com seu talento de persuadir a realidade a
se vestir de ficção. Prefácio, francamente, é troço desnecessário para ela, no
máximo ritual, pois suas personagens desvelam-se nos próprios atos e apresentam
a autora com quem dividem a magia da criação literária.
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