sábado, 8 de novembro de 2025

O conto de Anika


Anika mudou a minha vida, embora nunca tenhamos avançado além dos cumprimentos formais e de breves diálogos na escola. Convivemos por três meses no Velho Mundo, desejando-nos em silêncio e sem noção da mutualidade do afeto. Apenas no derradeiro instante, quando voltava para casa, a milhares de quilômetros de onde nos conhecemos, ela disse, sussurrante: “Estoy enamorada de ti”.

E o sussurro entrou pelo meu ouvido esquerdo, encheu-me os pulmões, arrastou um calafrio da ponta do dedo mindinho do pé direito à região central do tórax e me arregalou os olhos. A mudez foi outro efeito colateral. Não respondi palavra. Abracei Anika, dei-lhe um beijo no rosto e vim-me embora. Em uma época de cartas, telegramas, cartões postais, sem e-mail, sem rede social, perdemos contato.

O problema é que eu também era louco pela moça argentina. Desde o primeiro dia de aula, fazia de tudo para ficar perto, mas sem arriscar. Considerava-me feio, especialmente diante daquela beleza exuberante. Então, inseguro e sem iniciativa, perdi a chance de partilhar a saliva, o suor, o pop rock no King & Queen, os passeios românticos, as mãos dadas pelos recantos secretos do Royal Pavilion.


Imagem gerada pelo Gemini.


Engraçado! Além de estudarmos na mesma sala, nada fizemos juntos, nem fotografia. Percebo, inclusive, que o rosto e as formas dela foram se perdendo nas vagas da memória, pouco a pouco, ano a ano, década a década. Uma lembrança que se transformou em idealização é o que me resta. Se a encontrasse agora, não a reconheceria. Mesmo assim, digo que era a mais linda naquele tempo-espaço.

O nosso romance irrealizado remete-me a um livro que li na adolescência. Não lembro do título. Do autor, muito menos. É a história do rapaz que se apaixona pela vendedora de discos. Como desculpa para encontrá-la, compra-lhe um vinil – ou seria CD? – todo santo dia. Quando ele some, de repente, a vendedora, também enamorada e muda, sai em busca do freguês, mas é tarde: ele havia morrido.

Depois de Anika, tornei-me assertivo, embora atrapalhado. Um alegre colecionador de foras. Sim, alegre! Melhor a vergonha do fora que a aflição da dúvida, ou pior, a descoberta tardia da reciprocidade. De lá para cá, como se nunca tivesse ouvido Chico Buarque dizer que “nem cantor incendiário ataca à queima-roupa a canção”, errei no tempo muitas vezes e quebrei a cara. Em outras, contudo, eu fui feliz.

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

“PRAGA DE MÃE”

Crônica com jeitão de carta para Jerônimo Augusto


Rapazinho desbravador das matas do Nova Betânia, quando o bairro nem sonhava ser “nobre” e mantinha ares rurais, quis sair à noite para brincar com os amigos. Dona Sandra, minha progenitora, deixou, mas pedindo que eu não fosse, pois estava com a sensação de que algo de ruim poderia ocorrer.

Para variar, teimei e saí. No meio da brincadeira, eis que a premonição se materializa: um coco despenca da árvore e me atinge o centro da cabeça. Botei sangue pelo nariz, foi o maior alvoroço, e voltei para casa certo de que aviso materno – que alguns chamam “praga de mãe” – é troço para lá de sério.

Fui criança tinhosa, embora o pior de mim viesse em outra fase: a adolescência! Levei pau nos estudos cinco vezes – somando três reprovações e duas desistências –, frequentava o baixo meretrício, fumava Hollywood e bebia escondido. Aos 14 anos, já trabalhava; e, aos 17, casei-me pela primeira vez.

Não obstante a experiência do pé de coco, eu não era de seguir conselho de ninguém. Intromissões na minha vida privada, a propósito, ainda são digeridas com dificuldade. Devo dizer, contudo, que meus pais tentaram ao máximo me orientar. Se errei, e errei muito, os erros são “minhas culpas”.

Um dia, já adulto, recomposto nos estudos e reencaminhado na vida, ouvi de mamãe a seguinte frase: “Só desejo a meus filhos que eles tenham filhos iguais a eles”. Quase me engasguei com o pedaço de pão interrompido na trajetória entre a boca e o estômago, e ainda queimei a língua com o café.

Na memória, o coqueiro, o coco, o nariz sangrando, a dor, o susto... Respirei fundo depois do engasgo, tomei uma talagada de água, olhei seriamente para ela e perguntei: “Pela caridade, o que você tem contra mim? Ou, pior, o que você tem contra os meus filhos?”. Dona Sandra riu e falou: “Pois é!”.

Diz a sabedoria popular que “praga de mãe pega”. Por isso, tremi nas bases. Se meus filhos tivessem dado uma fração do trabalho que dei, eu teria enlouquecido de vez. Felizmente, não foi praga – dona Sandra jamais faria isso – e sim um gracejo. Fosse praga, meus pequenos estariam ferrados.

Eu sofreria, decerto, mas Sandrinha, Cidinho e Jerônimo, que nada têm a ver com isso, carregariam a pena pelo condenado. Em vez de imprecação, mamãe certamente brincou e lançou bênçãos, daquelas que somente as avós são capazes, e me ajuda, até hoje, na construção permanente dos três.

Peço desculpas se divaguei além da conta nas ilhas da memória, antes de chegar ao tema desta crônica, que deveria ser carta. Uma carta pela conclusão do Ensino Médio, para o meu filho caçula, Jerônimo Augusto Morais do Couto da Escóssia Rosado, maior nome de todo lugar onde ele quiser estar.

O problema é que nunca enxergo um filho isoladamente. São sempre as minhas crianças amadas. Sim, apesar dos 34, 26 e 17 anos, são mesmo aquela entidade sagrada de três personalidades diversas unidas neste coração abestalhado, eternamente seduzido, oásis de alegria no deserto da tristeza.

Então, se digo, sem receio de incorrer no 1º dos pecados capitais, que Jerônimo é lindo, é inteligente, é cordial, é isto e mais aquilo e coisa e tal, significa que Sandrinha e Cidinho também o são. Devo isso não apenas aos três, devo também a mamãe, avó tão radiante quanto a que ela me deu.

Jerônimo Augusto, amo você e seus irmãos, incondicionalmente, a começar pelos nomes que eu e suas mães lhes demos. Sempre que você chega com esse sorriso, e nos beija, e nos abraça, e derrama sua bondade sobre nós, ou apenas se nos lembramos, a primavera se apresenta em flores e perfumes.

Perdão, filhote, se aqui não digo novidade, inovação, elogio que você já não tenha ouvido, palavra que não habite o nosso dicionário afetivo, algo para ser lido na escola a fim de que o mundo saiba do meu amor. Puta merda, Galego! Tenho porra nenhuma a acrescentar! O que lhe desejo, você tem. E você é!