sábado, 20 de setembro de 2025

Esquerda e direita


Desde o advento do bolsonarismo, o brasileiro quebra a cabeça com as concepções de “esquerda” e “direita”, sem descuidar do “centro” com as suas oscilações pendulares, “pra lá... para cá... pra lá, pra cá, pra lá”, como na musiquinha infantil. A Folha de S.Paulo até criou um teste on-line prometendo ajudar a resolver crises ideológicas de identidade. Usei a ferramenta, mas fiquei encafifado com a resposta. Segundo o jornal, eu seria de “centro-esquerda”: esquerda na pauta de costumes e liberal em temas econômicos.

Faz algumas semanas – embora obstinado a comprar apenas livros digitais, para fazer jus ao investimento no Kindle –, adquiri, em papel, Direita e Esquerda – razões e significados de uma distinção política, de Noberto Bobbio. Finalizada a leitura, apaziguei-me. A inquietação tem razão de ser, e eu, que nem entendo do assunto, estava certo: não existem dois lados definidos, delimitados em bolhas homogêneas. São várias as direitas e esquerdas, todas flutuantes no tempo e no espaço.

Extrema esquerda, esquerda moderada, centro-esquerda, liberais socialistas, progressistas, anarquistas, comunistas, socialistas, esquerda autoritária. Extrema direita, direita moderada, centro-direita, conservadorismo, teocracia, fascismo, liberalismo, nazismo, direita democrata. Do mesmo modo, as bandeiras partidárias, muito além da simples alteração do nome – Arena, PDS, PFL, Democratas, União Brasil – tremulam ao sabor dos ventos definidores de suas pautas no tabuleiro do jogo do poder.

Quando pesquisei sobre o perfil dos proprietários do O Mossoroense, na primeira fase do periódico – 1871 a 1876 –, observei que eles eram filiados ao Partido Liberal, considerado vanguardista em oposição ao Partido Conservador. O PL assumia o papel da esquerda no século XIX, ao defender a abolição da escravatura, as eleições diretas, as liberdades religiosa, intelectual, política e individual. Agora, do lado de baixo do Equador, a mesma agremiação é associada ao extremo conservadorismo.

Lembrei-me agora do meu flerte com o comunismo. Foi por volta dos 11 anos de idade, quando o Brasil ainda vivia a ditadura iniciada com o golpe de 1964. O general João Batista Figueiredo presidia a Nação. Havia dois partidos principais, PDS e PMDB, que, em Mossoró, todavia, desdobravam-se em quatro. De um lado, o PDS 1 de Tarcísio Maia e o PDS 2 de meu avô Vingt Rosado. Do outro, o PMDB que detestava os Rosados e o PMDB que, em agradecimento a eles pelo “Voto Camarão”, defendia o “Voto Cinturão”.

Devo explicar essa história de “Camarão” e “Cinturão” antes de retornar ao comunismo? Sim? Pois vamos lá! No pleito de 1982, o voto era vinculado, ou seja, o eleitor só podia sufragar candidatos do mesmo partido, dispostos assim na chapa eleitoral: governador, senador, prefeito, deputado federal, deputado estadual e vereador. Tentando a reeleição a deputado federal, Vingt queria, mas não podia pedir voto para os candidatos a governador e senador do PMDB, pois a mistura anularia a cédula.


Ilustração gerada pelo Gemini.

A saída foi pedir o voto em branco para governador e senador. Como tais cargos estavam na cabeça da lista, surgiu o apelido “Voto Camarão”. Para constar, geralmente, arranca-se e não se come a cabeça desse saboroso crustáceo. Figueiredo, inclusive, foi a Mossoró para dizer que comeria camarão com cabeça e tudo. Não dobrou Vingt. Em contrapartida, os peemedebistas agradecidos pediam o “Voto Cinturão”, o sufrágio em branco para prefeito, cargo situado na cintura da cédula eleitoral.

De volta ao comunismo. Justamente naquela época, contei ao meu pai, Laíre Rosado, que decidira ser comunista, influenciado sabe-se lá por quem. Com a tranquilidade que lhe é peculiar, ele se dirigiu à prateleira – estávamos na biblioteca –, arrastou um livro da estante e me entregou dizendo: “Leia, aprenda o que é comunismo para ser um comunista consciente”. Não vou fingir costume. Entendi bulhufas! E, pior: nem me lembro do título. Só sei que era fininho e tinha na capa uma foto de Karl Marx.

Descobri, depois, que papai tinha a mania de difundir “obras subversivas”. Chegou a responder a um Inquérito Policial Militar (IPM) no 16º Batalhão de Infantaria Motorizado de Natal (16 RI), sob a acusação quase verdadeira de disseminar literatura de países da Cortina de Ferro no RN. Digo “quase” porque a intimação do Exército para esclarecer os fatos antecedeu – e frustrou – a chegada de livros que ele pedira, por carta, a embaixadas de vários países, sem observar se os governos eram de esquerda ou de direita.

Luiz Alves Neto, ex-preso político cuja companheira, Anatália Melo Alves, foi “suicidada” no DOPS do Pernambuco, contou-me que o seu ingresso no comunismo se deu, entre outros fatores, pela leitura de livros que Laíre lhe doou. As obras proibidas já não existem. Dona Iracema, uma das irmãs de Lulu, disse-me, em determinada ocasião, que enterrou tudo no quintal de casa ao receber a notícia de que o irmão militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) havia sido capturado.

Não aderi ao comunismo, apesar do apreço pelas leituras marxistas, incluindo o próprio Marx, Foucault e Bakhtin. Aliás, nunca desejei filiação partidária, ainda menos agora, diante da volatilidade do pensamento ideológico ocidental. Desde quando Bolsonaro reacendeu o orgulho da extrema direita, no Brasil, sufocando as outras direitas, lançaram-se luzes sobre a fragmentariedade do campo político. Assim, dizer-se esquerda ou direita soa ingênuo na liquidez da modernidade. Qual esquerda? Qual direita?

Se eu tivesse que me autodeclarar, dir-me-ia de esquerda moderada, aquela que admite a economia de mercado, sem, contudo, descuidar dos direitos dos trabalhadores e dos consumidores; que promove o bem-estar social por meio de políticas afirmativas, da defesa do meio ambiente, do provimento das necessidades básicas do ser humano; que faz justiça fiscal, a partir de políticas tributárias equitativas; que diverge dentro das leis e disputa o poder pelas vias democráticas.

A Folha quase acerta. Perdeu o gol por não perceber que, entre as barras laterais da trave existem fatores aquém e além do goleiro. Bem assim, nas páginas da história, não há somente a mancha de impressão entre as margens do papel. Há textos, subtextos, imagens. Gritos! Silêncios... Discursos, interdiscursos. Há subjetividades em trânsito por linhas e entrelinhas capazes de se refletir e se refratar, de convergir e de se opor, de morrer e de renascer – do nada como a onda autoritária que aterroriza o mundo democrático.


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 Da série, faça você mesmo, seguem testes que prometem revelar o seu perfil ideológico:


1) https://www1.folha.uol.com.br/poder/teste-esquerda-direita-centro/

2) https://especiais.gazetadopovo.com.br/quiz-politico-ideologico/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=dinamico&gad_source=1&gad_campaignid=20802200119&gbraid=0AAAAADlVTPeofzII6LYkj2-0wYz5Ono99&gclid=CjwKCAjwobnGBhBNEiwAu2mpFCOHdC3JIZRqir4tes-A2iKXlS-RxWYdE2j4roCIUyiSbciPCr_KXRoCQ6kQAvD_BwE

3) https://infograficos.oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024-esquerda-centro-ou-direita-descubra-seu-perfil-ideologico.html

sábado, 6 de setembro de 2025

RACISMO REGIONAL

Há coisas que a gente lê, confere a veracidade, mas não quer acreditar no que está lendo, tamanha a imbecilidade, para dizer o mínimo. Se você não soube, procure a história do vereador Mateus Batista (União Brasil), integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), que defendeu, na Câmara Municipal de Joinville/SC, a elaboração de um projeto de lei com o objetivo de proibir a migração de nortistas e nordestinos para a “Cidade das Flores”.

Segundo esse racistazinho de meia pataca, Santa Catarina será favelizada se não barrar pessoas do Norte/Nordeste. Mas espere! Racistazinho? Tal conduta é mesmo racista? Semanticamente, afirmo que sim, e comprovo com o dicionário. Racismo, diz o Houaiss, é também o preconceito contra “indivíduos pertencentes a grupos [...] considerados inferiores”, é “discriminação social”, é gesto de hostilidade contra categorias de seres humanos.

E criminalmente, como defende a corajosa vereadora Thabatta Pimenta (PSOL), de Natal/RN? Por infelicidade, não. Conforme o art. 1º da Lei nº 7.716/1989 (Lei do Crime Racial), são racistas os autores de “crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Acrescentam-se a homofobia e a transfobia ao rol como delitos equiparados, por obra do Supremo Tribunal Federal (STF).

O discurso do vereador, embora indecoroso, ridículo, babaca, não é alcançado pela legislação antirracismo porque não se enquadra nos conceitos de raça, um marcador social que enfoca características biológicas; de cor, uma criação também social que hierarquiza as pessoas pela tonalidade da pele; ou de etnia, divisão de grupos por afinidades culturais, envolvendo língua, semelhanças genéticas, estrutura comunitária, política e territorial.

 

Ilustração produzida por inteligência artificial (Gemini)

Além disso, não se deve confundir procedência nacional com procedência regional. A discriminação por razões de procedência nacional é o comportamento hostil contra quem vem do exterior. Assim, quando um brasileiro – que contraditoriamente integra o “União Brasil” e o “Brasil Livre” – externa ódio por conterrâneos de outros Estados, age com índole racista no cartório da língua portuguesa, mas não perante a legislação penal.

Também não é injúria racial, crime previsto no art. 2-A da Lei nº 7.716/1989 e que consiste em ofender “a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”. A questão é simples: a injúria atinge a honra subjetiva, ou seja, o sentimento que o sujeito tem de si, diferentemente da honra objetiva, juízo que o outro faz dele. Então, para ser injúria racial, a conduta do político sulista precisaria ter alguma vítima específica.

A notícia boa é a de que tramitam na Câmara dos Deputados, apensados um ao outro, e prontos para votação em plenário, dois projetos de lei (2564/2021 e 5944/2016) relativos ao assunto. Se forem aprovados, a discriminação regional passará a ser mais uma modalidade de racismo. Aí, quem resolver imitar o edil ou se ele próprio voltar a destilar preconceito, será enquadrado como racista tanto no aspecto linguístico quanto na seara jurisdicional.

Por enquanto, nada pode ser feito? Pode! Deve! E não será a primeira vez. O Ministério Público Federal (MPF) já impetrou ações civis públicas requerendo a condenação de pessoas da laia de Mateus Batista ao pagamento de danos morais coletivos. Agiu assim, por exemplo, com Ângela Machado, diretora de Responsabilidade Social do Flamengo; e contra um piloto de avião, ambos por discursos discriminatórios contra a gente do Nordeste.

Como, entretanto, o direito não é uma ciência exata, existem opiniões divergentes em todas as questões, inclusive acerca do que acabei de escrever, interpretando a lei com objetividade e garantismo. Há integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário que ampliam o significado do termo “procedência nacional”, a fim de alcançar manifestações discriminatórias de natureza regional. Trago até exemplos de condenações penais.

O vereador Sandro Fantinel (PL), de Caxias do Sul/RS, atacou os baianos e foi condenado, em 1ª instância, a três anos de cadeia, à perda do cargo e ao pagamento de R$ 50 mil. Isso, por “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de [...] procedência nacional” (art. 20 da Lei nº 7.716/1989). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), por sua vez, absolveu o réu por entender impossível harmonizar fato e norma.

Em sentido oposto, um pedido de produção de provas negado pela Justiça Federal do RN e pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), por não verem crime na conduta narrada pelo MPF, acabou autorizado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O objetivo: identificar o autor das frases “E aí tudo graças aos flagelados nordestinos que vivem de bolsa esmola” e “Ebola, olha com carinho para o Nordeste”, vistas em perfil do Facebook.

Admito que a decisão do STJ não é absurda, se observada à luz do art. 20-C da Lei nº 7.716/1989. Está dito ali que o juiz deve valorar como discriminatórios, gestos contra indivíduo ou minorias que gerem “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Viu? “Procedência”, sem especificação de origem.

Parodiando Ulysses Guimarães, tenho ódio ao racismo. Ódio e nojo! Ao mesmo tempo, reitero a visão garantista de quem ama a democracia e defende o processo penal democrático, no qual os direitos fundamentais do indivíduo são respeitados. Romper tal barreira, por melhor que se mostre a intenção, traz graves riscos para a sociedade. No direito, o fim não pode justificar o meio. Fora da legalidade estrita, o meio se confunde com o crime.