domingo, 8 de janeiro de 2023

O VALOR QUE O PEIDO TEM

Aguardava por atendimento diante do balcão da farmácia. Precisava comprar os cachetes que tomo desde os 25 anos de idade para controle da pressão arterial e do colesterol. Herança genética, segundo o cardiologista.

A fila estava parada porque uma senhora elegante, com sinais externos de hipocondria, a considerar as três cestinhas apinhadas de medicamentos, vitaminas, fitoterápicos, monopolizava a única funcionária disponível. Até Emulsão de Scott – eca! – a dondoca separara. Suspeito que este item, em especial, serviria de instrumento de tortura contra algum filho ou neto.

E eu ali, puto da vida, já pensando em mudar de fornecedor de drogas, comecei a ler anúncios colados nas prateleiras na expectativa de abstrair, quando, de repente, encontro o Luftal em promoção pela bagatela de R$ 46,00.

Inevitavelmente me veio à lembrança “O Valor que o peido tem”, de Celso da Silveira, de quem fui quase vizinho quando morei em Natal pela segunda vez, a partir de 1999. O título do livro, na verdade, é “Peido – O traque... O valor que o peido tem”, uma ode à emancipação do pum. Palavras dele:


“O peido de um general 

não pode ser comparado 

com o peido de um soldado

Que em tudo é desigual

Tem gente que peida mal,

há outros que peidam bem

Eu não conheço ninguém

que ainda não tenha peidado

Mas o povo não tem dado,

o valor que o peido tem”.


Com o Luftal em gotas ou comprimidos, de marca ou genérico, por quase 50 contos, eu mesmo já reconheço a grandiosidade da flatulência espontânea. 

Lógico, quem peida bem talvez saia por aí peidando e andando para o semelhante que vive entourido – chique, não é? Entourido! Prefiro o popular “inturido” –. Há, de fato, pessoas sádicas que não se importam com o sofrimento do pobre coitado – nada de Menino Pobrezinho, pela caridade – que sente as dores do parto sem parir, no exato instante em que a bufa resvala do tórax ao vazio, na transversal, sem encontrar a luz no fim do túnel.

Feliz era a musa de uma das mais célebres glosas fesceninas do Rio Grande do Norte, de autoria atribuída a Moyses Lopes Sesyom. De acordo com o poeta, a figura não passava tempo ruim, bastava fastar a perna de lado para fazer a terra balançar que nem os terremotos de João Câmara e Caraúbas. Diz assim:


“MOTE

O peido que a doida deu

Quase não cabe no cu


GLOSA

Isto ontem aconteceu

Debaixo da gameleira,

Foi um tiro de ronqueira

O peido que a doida deu.

A terra toda tremeu,

Abalou todo o Assú,

Ela mexendo um angu,

Puxou a perna de lado

Deu um peido tão danado

Quase não cabe no cu”.


Francisco Augusto Caldas de Amorim, na 3ª edição de “Eu conheci Sesyom”, que me foi presenteada por Fernando Tavares, atesta a autoria dos versos. A inspiradora, conforme Chisquito, foi Bandeira, mulher que habitava à sombra de um pé de gameleira que havia defronte onde veio a ser construído o Cine Pedro Amorim, em Assú/RN, nas décadas iniciais do século XX. O escritor João Ramalho, contudo, acusava Sesyom de plágio. A glosa ou o mote seria de um sujeito de Campo Grande cujo nome não recordo, embora o autor de “O beato da serra de João do Vale” sempre me falasse a respeito.

Debates à parte, e seja lá de quem for o peido da doida, só peço a Deus que me livre e guarde do entourimento – outra vez –, mas também do peido público, principalmente em tons denunciadores, ofensivos, humilhantes, que, confesso, já me pegaram desprevenido. 

Você fala e o bicho escapa semitonando. Exagero? Não! Pergunte a Deltan Dallagnol, que, em mensagem interceptada pela Vaza Jato – não é trocadilho – escreveu a frase “foi o tom do meu último peido”. Na época, a internauta Lívia Prata postou no Twitter que estava em dúvida se Deltan peida em “lá sustenido” ou “dó menor”.

Bom, o cara era procurador da República de Curitiba, renunciou para não ser punido e se elegeu deputado federal mais votado do Paraná, com quase 345 mil votos. Autarquia dessas, arrisco dizer, peida grave e grosso, em mi maior.

Pode parecer implicância. Jamais! Dou maior valor. Ruim é a sensação de querer e não poder peidar livremente. A liberdade precisa ser valorizada, tanto a dos patriotas quanto a dos esquerdistas, como também defende o grande Otacílio Batista:


“O peido é bom toda hora

Sem peido não há quem passe

A criança quando nasce

Tanto peida como chora

Um peido ao romper da aurora

Eu não troco por ninguém

Há noites que eu solto cem

Peidos grandes e pequenos

Já conheço mais ou menos

O valor que o peido tem”


Jurava que esses versos eram de Celso da Silveira. Não vou brigar com o Google, o pai de todos os burros. Ele certamente tem razão, considerando que 90% das minhas memórias são falsas e os outros 10% eu invento. De qualquer maneira, vou checar a informação em livros de “mermo-mermo”, em que a tinta sangra no papel, quando fizer bom tempo e puder entrar no quartinho em que está a minha singela biblioteca. Pode ser que os dois, Celso e Otacílio, tenham se servido do mesmo mote.

Abre parênteses.

Fiquei confuso com algo que escrevi parágrafos antes e que volta ao pensamento provocando a interrogação: bufa é manifestação da esquerda ou da direita? 

Ao alcance da mão, tenho o Houaiss, melhor dicionário da língua portuguesa da atualidade, conforme especialistas. Para ele, peidar significa “disparar peidos involuntários e repetidos”. Ou seja, um ato inconsciente coletivo que ignora a livre iniciativa, a existência e o prazer da porção unitária de gases. 

O peido, assim anunciado, só pode ser comunista, e o preço da simeticona um instrumento de exploração capitalista, mas vamos esquecer as ideologias. Deixa para lá, como diria o professor e advogado Charles Phelan, alter ego de Melissa Hofman, amante psicodélica do jornalista Jacson Damasceno.

Fecha parênteses.

Resumindo a ópera bufa – sem trocadilhos, repito – prefiro morrer entourido – ha, ha, ha, ha... ha... muito engraçado escrever desse jeito – do que pagar R$ 46,00 num frasco de Luftal. Domingo, também conhecido como hoje, amanheci na feira em busca de hortelã-pimenta, cidreira, erva-doce, camomila, louro e boldo. Estoque para dois meses garantido por menos de R$ 10,00.

Vou experimentar agora. Você não está convidado, não apareça. Quem avisa amigo é.



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