Ontem fiz um discurso. Se é que
meia dúzia de palavras encangadas umas nas outras merece esse rótulo, no
sentido mundano da palavra. Não o discurso da Escola Francesa, não o discurso
do Ciclo de Bakhtin, que se forma de todas as matérias, inclusive do silêncio e
do esquecimento. Refiro-me à oratória, à técnica dos que seduzem as palavras na
ponta da língua, diferentemente de mim, que já acordei com 14 anos de idade, trepado
numa máquina de escrever.
Não sei dizer nada que não se imprima
em letra. Outrora, no papel tabulado para suportar 30 linhas de 70 toques.
Hoje, a tela do computador no formato A4 e margens que o bicho determina é a
superfície onde me jogo que nem Rogério Dias, Laércio Eugênio, Everaldo
Botelho, Marieta Lima, Anabela, na expectativa de pintar a cena que me chega de
boca em boca, com as tintas da história e as marcas secretas das identidades de
cada indivíduo que me conta algo.
Gozo quando a imagem emprenha o
verbo para se procriar em Times New Roman,
como se dominasse o formão que fez de um tronco, o capoeirista, de Escravo; e,
de um paralelepípedo, a cabeça tridimensional, de Marcelo Amarelo. Escrever é lírico
em Marcos Ferreira, militância em Caio César Muniz, tradição em Antônio Francisco,
metalinguagem em Aluísio Barros. É o que me cai ao bucho, porque escrevo por função
desde quando me entendo por coisa.
Meus suspiros, contudo, estão
contados: li há pouco em Walter Benjamim, que “a arte de narrar está em vias de
extinção”. Poucos, instigados a fazê-lo, conseguem reproduzir as experiências
vivenciadas ou conhecidas por fontes indiretas, a exemplo dos livros. Sendo, no
raso e no fundo, o moleque que largou a escola sem aprender a estética da
criação verbal, autodidata que nem a fórceps arrancaram das entranhas da burrice,
sinto-me a prumo da desinvenção.
Tivesse herdado de meu avô! Aí,
sim, meu avô era “o narrador”. Recriava-se no raciocínio veloz. Narrava! Todos parados,
ouvindo. Era Leskov para Benjamim, à vontade no tempo, no espaço. Conheceu o
mundo e o mundo nunca lhe foi maior que a aldeia que o viu nascer, crecer,
finar-se. Por isso, desvendava universos nas ruelas provincianas, na memória
coletiva qual Halbwachs, e sua palavra era a convergência das palavras latentes
nos sem-rosto da multidão.
Mas só trago no sangue, que falo
de mim ao dizer dos outros, tendo tanto de todos quanto a multidão que sou, na esperança
de existir num corpo metalinguístico disforme onde o suor não apodreça a alma.
E atenção: desconheço quantos leitores há do lado de lá, se há. Escrevo como me
digo aqui, conversando com esse e aquele, cara a cara, na linha melódica dos
meninos Sabiás do Rabo da Gata, somente para você, às margens da prosa enlatada
dos eruditos.
Fonemas engarrafados, tudo bem. Até
bebo. Depois da terceira dose de modernidade líquida, sem gelo, até Zygmunt
Bauman tem argumentos sólidos para descrever o caráter estático da sobriedade acadêmica,
túmulo do discurso, da memória, da identidade, do enunciado, da enunciação e do
infeliz que atravessa a nado o oceano de orações subordinadas e morre na praia
ao saber que narrativa de gente de mermo-mermo não molha a goela do doutor.
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