sábado, 4 de agosto de 2012

O fantasma


 Voltei a caminhar nas sombras e a dormir nos becos, a ser o navegador sem farol das ilhas mal-assombradas que convidam ao mundo grande do poema de Drummond, porque “meu coração cresce dez metros e explode”.

É sempre assim: quando não o arrancam do peito e o espancam, e o esmagam sob plataformas, e o detonam sem pavio, eu próprio o mutilo com as unhas em sessões intermináveis de autoflagelo.

Faz escuro sob o Sol e meus sentidos não enxergam aonde ir, se é que haveria destino capaz de comportar sonhos ornamentados com ametistas no embrulho de papel amarelado do velho soneto apócrifo.

O fantasma mirando o rosto eterno
Refletido em retalhos de memória,
Tentando recompor a própria história
Pelos cacos do espelho do inferno.

O livro empoeirado numa estante,
Ornado com as teias das aranhas,
Traz poemas latentes nas entranhas
Do corpo do papel agonizante.

Flores murchas sedentas de perfume
Fadadas a morrer em jardineiras
De túmulos caiados de ciúme.

Todos eles são quem, perdido em medos,
Oprimido por rugas, por olheiras,
Deixa o tempo escapar por entre os dedos.

De manhã, na penumbra, arrasto com os pés a corrente formada por elos de angústia. Os tornozelos em carne viva. Os pulsos, também fechados em argolas de aço, não se erguem à altura do tórax. E a cabeça. A cabeça oprimida por toneladas de minhocas curva a espinha e mostra o fundo das calças em reconhecimento à derrota.

De noite, palmo sequer de visibilidade, o chão esquelético e nu substitui a cama farta de outrora, onde ninfas e musas, na pele branca da criatura, vestiam-me com a doce ilusão de criador para, ao fim e ao cabo, abandonarem na sarjeta o monstro do espelho.

Tento dormir, mas, antes mesmo da sensação de queda, cães esfomeados me acordam a mordidas. Na vigília forçada, ofegante, o som de uma gota d’água renitente arromba-me os ouvidos e o cheiro da cal do travesseiro resseca a mucosa das narinas.

Quatro da madrugada. Eis que ouço passos de partida.

Valei-me, Deus,...

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