sábado, 12 de setembro de 2009
Vai, Cid! ser frouxo na vida
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(Drummond)
Quando nasci, um anjo caído do Alto do Louvor, com as ideias temperadas nos vapores etílicos e a moleira rachada pelo sol de Mossoró, olhou-me no fundo dos olhos e disse: “Vai, Cid! ser frouxo na vida”. Não levei a sério o vaticínio, mas, logo na infância percebi sua eficácia quando outra criança, menorzinha inclusive, estapeou-me as bochechas rosadas no corredor do Colégio Diocesano, de frente à cozinha de Dona Raimunda, e eu corri em desespero clamando socorro.
O que entristecia até o fim da adolescência, período no qual todos querem ser “os caras”, transformou-se em orgulho na fase adulta. Deus me deu o privilégio de ser pacato e, como diz Mestre Tonino, com a sapiência dos velhos lobos do mar, ninguém derrota a própria natureza. O corpo flácido de musculatura não menos lânguida revela a indisposição deste humilde sujeito que o habita faz 37 anos, quase 38, para a troca de socos, pontapés e mais babaquices da ordem.
Ser assim, molenga militante, tem vantagens, incluindo integridade física e longevidade. Quem compra briga pode levar a morte de brinde, como ocorreu ao sobrinho do vaqueiro da antiga fazenda Mororó. Ouvi sobre suas aventuras de madrugada, escanchado nos mourões do curral, e pouco depois de o dia se espalhar na caatinga empoeirada, ouvi sobre seu passamento na ponta da faca de um sertanejo sereno que reagiu de susto, matando-o por medo de ser assassinado.
Coincidência temática: o radio toca a música “We Can Work It Out”, algo como “Podemos resolver esse problema”, de John Lennon e Paul McCartney. Os Beatles a interpretam enfatizando o trecho “Life is very short/ and there’s no time/ for fussing and fighting, my friend”. Perfeito: “A vida é muito curta/ e não há tempo/ para confusão e briga, meu amigo”. Dou um boi para não cair numa peleja e, se entrar por má sorte, a boiada para escapar sem hematomas.
Brigar não faz parte dos meus defeitos. Tirei a última prova segunda-feira, feriado da Independência, no momento em que um rapaz rico, funcionário de uma empresa importante, tentou intimidar-me com a cara feia e meia dúzia de ameaças, depois que fotografei o estrago feito por vândalos no portão da casa de minha família, na praia de Tibau, bem como placas de veículos suspeitos estacionados em nosso pátio para que, a partir delas, a polícia investigasse o crime.
A figura de sotaque carioca cismou que seu semblante desafiador ficara registrado nas imagens e invadiu nossa propriedade exigindo que eu as apagasse, pois se o seu rosto aparecesse em algum lugar, haveria consequências. O gesto impensado e desrespeitoso, passível de enquadramento em pelo menos dois artigos do Código Penal, provocou o internamento, com severa crise hipertensiva, da senhora que, em meio à cena dantesca, posicionou-se entre nós e o expulsou.
A propósito, nem sei se o valentão aparece nas fotos entregues à polícia. Espero, no entanto, que ele, enxergando-se nestas mal traçadas, reflita sobre seus arroubos juvenis e perceba que o poder da violência se nutre da fraqueza do espírito. Se em vez de paz o texto despertar ódio e o moço resolver concluir o serviço, apresso-me em adverti-lo, como se amigos fôssemos, para evitar constrangimentos: prepare-se porque eu corro muito. Com medo, nem bala me pega.
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11 comentários:
amigo, estou com vc, mas vale um covarde vivo que um heroi morto
Certamente, amigo, e eu prefiro permanecer entre os vivos.
Cid
"...Vai, Cid! ser frouxo na vida!..."
rs rs rs. Corres muito é? Bom saber... Sempre alegro-me em ler-te. Parabéns. Bjks,
Corro, especialmente assustado. Hahahaha
Cid
Muito bem! Sensacional! Estupendo! Bravo! Ou melhor, frouxo! Ótimo texto, meu amigo.
Até então, para validar minha moleza, valia-me somente do livro dos Provérbios, que diz: "Não tenhas inveja do homem violento, nem escolhas nenhum dos seus caminhos. Porque o perverso é abominável ao SENHOR, mas com os sinceros ele tem intimidade".
Agora vou carregar também esses seus escritos.
Estou, definitivamente, aliviado. Sou frouxo e devo continuar sendo.
Amigo, a Band fez de você um sujeito religioso. Amém, shalom, saravá!
Cid
Como dizia o Nelson Rodrigues: "EU SOU UM EX-COVARDE". A valentia de Nelson estava nas palavras...
Oi, Chico, e o melhor é que a palavra é mais forte que os músculos.
Abraço,
Cid
Cid, Cid... Que minha mãe ainda chama de "menino". Vc nem precisa de valentia, ganha tudo no carisma
Olá Cid. Cara ri muito com o texto. Muito boa a forma como você escreve. Lembrei de uma frase que não sei quem disse uma vez e eu escutei: "O herói é aquele sujeito que não conseguiu correr".kkkkkk Muito boa. Parabéns pelo texto. Muito boa essa leitura. Um abraço.
A casa é sua Esdras, volte sempre.
Cid
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