tricotomizado (dividido em três cursos d'água) por idéia de Wilson
Rosado, genial autodidata, e obra do prefeito Dix-huit Rosado,
transbordou, inundando vários pontos da cidade. O Centro, por exemplo,
parecia um projeto de Atlântida, a mitológica cidade subaquática.
Havia piabas até no entorno da praça do Pax, nosso querido e extinto
cinema de saudosos vesperais.
O jornal O Mossoroense, coitado, teve enorme prejuízo. Recebemos, eu e
Chico Guerra, a infrutífera missão de proteger a sede da empresa.
Recrutamos Seu João, competente mestre-de-obras, para lacrar as
entradas do edifício. Havia duas – a da recepção e a da lateral, que
dava acesso à escada dos andares superiores. Naquela época, a redação
funcionava no primeiro andar. O segundo, meio que abandonado, servia
de depósito.
Pois bem, Seu João fez o serviço. As paredes ficaram ótimas, mas de
nada adiantaram. A água estourou o piso e subiu mais de metro,
danificando vários equipamentos, a exemplo das impressoras Big Chief
29 e Marinonni, aquela americana, esta francesa, nunca italiana,
conforme equivocadamente escrevi certa vez. O pior foi constatar a
perda quase total dos arquivos. Cem anos de História tragados pela
sede insaciável da enchente.
Naquele instante, já me encontrava alistado da Defesa Civil, que ao
contrário de hoje funcionava de verdade, sem a necessidade de
intermináveis reuniões de "planejamento". Trabalhei voluntariamente
preparando cestas básicas, com víveres doados pela população, por
empresários e pela própria prefeitura, para serem distribuídas como
forma de amenizar as terríveis necessidades pelas quais passavam as
pessoas desabrigadas.
As áreas atingidas, por incrível que pareça, são as mesmas de hoje,
demonstrando a inércia do poder público no tocante a providências
definitivas. Justiça seja feita, Dix-huit fez a parte dele. A
tricotomização é uma das grandes obras realizadas no município. Não
existisse, pessoas estariam, igual a 1985, trafegando de canoa pelas
ruas alagadas e pescando em salas-de-estar, coisa que também
presenciei entre assombrado e curioso.
Houve uma campanha nacional para arrecadar donativos. Vários artistas
emprestaram sua voz para o poema de Patativa: "A sorte do nordestino /
é mesmo de fazer dó / Seca sem chuva é ruim / Mas seca d'água é pior".
Nunca me esqueci, estrofes vez por outra martelam meu juízo, se é que
nalgum tempo tive esse negócio. Ainda devo possuir o compacto, a
bolachinha, 33 r.p.m., guardado em algum dos lugares por onde andei.
A situação era grave, gravíssima, e olhe que inexistiam complicadores
modernos, tipo dengue e risco de transmissão de outras doenças por
causa do lixo urbano e da imundície que a chuva arrasta dos bueiros
infestados de ratos e baratas. O rio pelo menos era limpo naquela
época, embora prestes a se transformar numa enorme fossa a céu aberto,
imundície perigosa e, acima disso, humilhante para quem sente a dor de
Mossoró.
Encerro antes de ceder à tentação de narrar o caso da senhora que
apareceu para uma sessão de fotos em meio à tragédia e pegou o beco
sem resolver patavina, dizendo ser natural o povo sofrer. Acinte
completo. Paro também porque recebi a notícia de que a enchente, por
causa do canal irregular feito no Paredões pela prefeitura, avança
rumo ao sítio onde guardo meus livros, único patrimônio que amealhei
em 22 anos de luta.
* Texto escrito aos 3 de abril de 2008 e "esquecido", até ontem, na
"memória" do computador.