sábado, 13 de março de 2010

O túmulo d'O Ébrio



Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo
(O Ébrio – Vicente Celestino)


Influência de minha avó materna, das músicas que ela cantava para os netos dormirem? Talvez. O certo é que, aos 11, 12 anos, eu já era fã de canções antigas, incluindo algumas descobertas por conta própria. O Ébrio e Coração Materno, de Vicente Celestino, entre as tantas. Assisti até ao filme inspirado na primeira dessas, e de mesmo nome, na tela no Cine-Teatro Pax. Década de 1980.

De certo, reapresentação, pois o “Balaio Porreta”, do poeta porreta Moacy Cirne (http://balaiovermelho.blogspot.com), informa-nos de sua exibição no Pax de Caicó, por volta de 1950. “No final, todos, absolutamente todos, inclusive os homens, choravam copiosamente diante do dramalhão”, comenta o vate seridoense, lembrando-me de que despejei lágrimas com metro e meio cada.

Não por acaso escrevo sobre “A Voz Orgulho do Brasil”. Acabo de ler no site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a notícia de que o viúvo da viúva de Vicente Celestino moveu ação contra a Santa Casa de Misericórdia, pleiteando titularidade do direito de “uso” do túmulo do cantor, no Cemitério São João Batista, no Botafogo. A Santa Casa, agora sei, administra os fossários cariocas.

Que nome feio da moléstia! Fossário? Figa! Deixa para lá, como diz minha amiga Melissa Hoffmann, o fato é que o cidadão José Alves Pinto, segundo marido da cantora, atriz, cineasta e escritora Gilda de Abreu Celestino, pretende, segundo parentes dela, despejar os restos mortais do tenor. Justificativa: ser legatário dos bens deixados pela esposa, que o nomeou herdeiro universal.

O juiz Rafael Estrela Nóbrega, da 30ª Vara Cível, a quem coube o julgamento do caso em primeira instância, frustrou a pretensão com argumentos simples: Alves Pinto não é da família Celestino, jazigo é bem afetado, de uso especial, e aquele em litígio, para piorar, ficou de fora do testamento da falecida. O dito-cujo – eu mencionei “dito-cujo” e não de cujus – pode recorrer da sentença.

A assessoria de imprensa da corte fluminense destaca depoimentos de parentes de Gilda, conforme os quais o viúvo pretende transferir a sepultura para terceiros, livrando-se dos restos mortais ali em repouso, algo que haveria tentado de outras maneiras. E olha que a campa onde os ébrios loucos depositam “segredos” e “lágrimas de dor” é das mais visitadas no Cemitério São João Batista.

O assunto me lembra uma tia, de saudosa memória, da qual peço licença para manter o nome em segredo. Precavida e querendo poupar os filhos desta dolorosa tarefa, ela adquiriu lote para si e para o marido no São Sebastião, nosso Cemitério Velho, muito antes de morrer. Escolheu lugar estratégico, de fácil acesso e à sombra de árvore frondosa, por ser menos abafado e claustrofóbico.

Certa feita, por erro do serviço funerário, enterraram o corpo de um estranho justo naquele canto. Confusão braba. A tia exigiu a transferência do cadáver. O município intentou demovê-la, oferecendo área diversa, maior até, se lhe aprouvesse. O contra-argumento, contudo, encerrou a briga: “Meu filho, sou uma mulher asmática e vou morrer sem fôlego se for enterrada no sol”.

P.S.: caía o ponto final ao pôr-do-sol quando o advogado José Wellington Diógenes chegou à redação. “Escrevendo? Sobre o quê?”, perguntou-me, aboletando-se incontinente diante do computador, sem esperar resposta. Leu, mostrou os cabelos do braço arrepiados e fez a observação que faltava: “E pensar que Vicente Celestino compôs o Ébrio, mas não bebia nem levou chifre”.

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