O Diabo Veste Prada, diz o cartaz desbotado que ilustra as ruínas imaginárias do Cine Panorama. Duvido dessa exclusividade. Penso que o Demo tem tantos figurinos – não necessariamente de grife – quanto faces no espelho do ódio. Quando o conheci, cara a cara, tête-à-tête, ele usava blusa branca e terno preto. Seria Prada? Ou Praga? Em verdade, em verdade lhe digo, em dupla negação: não entendo porra nenhuma de moda, embora minha cafonice não importe ao desfecho da narrativa.
Então, voltando ao que interessa, afirmo sem pestanejar que Satanás é angelical a olho nu. Não à toa o chamam Lúcifer, “Portador da Luz”. Nas sombras, irmão, irmã, Belzebu é sempre ele sendo ele, fazendo o que ele faz de melhor, exatamente como dizem os profetas do Apocalipse. Por isso, mesmo assumindo absoluta descrença na existência teológica do Diabo, garanto que, em carne, osso, arrogância, falsidade e sonsice, Satanás existe e faz jus – às pampas – ao doce apelido de Coisa Ruim.
Tenho autoridade pragmática para dar testemunho porque convivi com o Troço, lá no Céu, por meses que me levaram aos consultórios de uma psiquiatra e de uma psicóloga. Como assim, no Céu? Ah, você não sabe? O Caramulhão tem uma embaixada no Céu, sobre as nuvens, com a entrada voltada para o Nascente. Trata-se de uma construção de arquitetura surreal minimalista, com muros de drywall e vidro, onde vivi graças a uma inocência que muitos julgarão incoerente com a minha idade.
De toda – falta de – sorte, confesso-me diante de você, leitor, leitora, confiando na discrição e no perdão de cada um: eu, Floriano da Rocha Nogueira, pessoa irrelevante constituída em três dimensões, quase fictícia e mundialmente anônima, fui serviçal do Encardido. E isso, para decepção de mim comigo mesmo, por uma ingenuidade discrepante das rugas que ostento, do meu decréscimo lúbrico, dos males que me travam a coluna vertebral e da necessidade de mijar de madrugada.
![]() |
| Imagem produzida pelo Gemini |
Espere, ouço vozes! Um debate? O medo aconselha a encerrar o assunto sem dar detalhes que possam revelar uma das identidades do Senhor das Moscas. A imprudência, contudo, guia-me os dedos nervosamente na superfície do teclado. Já não os determino, nem os meus sentidos os guiam. Trinco os dentes, concentro-me, e os dedos não param, debatem-se com força e rapidez dando-me a impressão de ouvir o “tec-tec-trim-din” da falecida máquina de datilografia sepultada no sarcófago da memória.
Assumo daqui. O que se lê doravante é coisa minha, um exercício psicográfico de si em mim. O outro não queria, mas conto, porque, sendo eu o eu oculto, não temo praga de urubu magro. É o seguinte: Coisa Ruim nasceu nos cafundós onde o nazista filho de Ferrabrás perdeu as botas. Saiu de lá menino, no verde-oliva dos 20 e poucos anos, para atormentar xarias e canguleiros. A sua voz mansa e o seu jeito falsamente simples iludiam os incautos para dominá-los e reduzi-los a estado vegetativo.
Nada prestava para Coisa Ruim. Todos eram inferiores, burros, sem direito a pensar e até a viver. Em contraponto, todos o odiavam, menos o inocente que iniciou a escrita destas mal traçadas, por acreditar na possibilidade de regeneração de homens e diabos. Não passou a odiá-lo nem depois de, graças à terapia, ter clareza daquilo a que fora submetido. O que sentia era uma espécie de nojo até agora não catalogado pela ciência. Nojo terçã que só se aplacava depois da projeção terapêutica do vômito.
Cuidado! Coisa Ruim é simpaticamente dissimulado e gentil na presença da vítima, o que o torna ainda mais letal. A maledicência, ele faz nas encolhas, conspirando, arrotando mentiras tão podres quanto o seu hálito de flores de defunto. Jamais cara a cara. Coisa Ruim, minha gente, é o famoso Cão em forma de Cão – digo, de gente. Como tem várias faces, nomes e formas de sedução, talvez você já tenha se deparado, sem perceber, com a Serpente, o Dragão de Iblis, Asmodeus, Leviatã, Mefistófeles.
O dono do corpo ateu que incorpora este desabafo não guarda mágoa. A Sertralina o ajuda a vencer negatividades. Inclusive, silenciaria se lhe fosse dado avaliar o Capeta. Enquanto vítima, dir-se-ia suspeito. Sua temporada no Inferno do Céu durou oito meses e uma manhã tardia, sem direito sequer a cerveja com Rimbaud. Traz de lá apenas o meio amargo de haver engolido, silente, leviandades ditas e escritas por Coisa Ruim sobre ele, um reles ser ficcional que se perdeu nas entrelinhas da estória.
