domingo, 5 de janeiro de 2025

Aqui em Tibau

Todos os anos, do final de dezembro a fevereiro ou março, a depender do Carnaval e do calendário escolar, estávamos aqui, em Tibau, onde Rio Grande do Norte e Ceará se misturam como se fossem o mesmo estado de espírito e de coisas. Para ser sincero, não gostava, vinha à força. Nada específico contra o lugarejo abençoado pela natureza que vi se transformar em cidade, embora lavar as lentes dos óculos de 30 em 30 minutos, por causa da maresia, sucedesse como fator relevante. O problema, a bem da verdade, é que, além da preferência por sertão, as noites longas e escuras do litoral me provocavam medo.

Contribuía para o assombro do menino frouxo, o cenário da casa dos avós, imóvel rústico de taipa rebocada com cal, que não mais existe, a não ser na memória, em fragmentos remendados pela imaginação. De qualquer maneira, vejo agora, em flashs, o alpendre voltado para o Atlântico, as portas e janelas amarelas, a sala em “T”, o banheiro, os quartos, o pátio espremido entre a saída dos fundos e o paredão úmido enlodado pelas águas das vertentes que jorravam sem parar. Sucumbiu em 1985, devastada pelas areias coloridas que desabaram em razão das chuvas torrenciais daquele ano.

Como se percebe, ficávamos entre o morro e o mar, o que já dava sensação de isolamento, e isso nas imediações da Pedra da Sereia, formação argilosa dotada de uma gruta esculpida pela maré e pela maré destruída ao longo do tempo. Reza a lenda que nela coabitavam duas criaturas míticas: uma jovem lindíssima que, em noites de lua cheia, seduzia homens e os arrastava até lá; e uma fera acorrentada que devorava os tais incautos. Nunca tive o privilégio de esbarrar com a moça nem o desprazer de encarar o monstro. Aliás, os dois eram um só nos meus pesadelos seriados, dignos de produção da Netflix.



À noite, o som revolto das ondas, o balé contemporâneo das dunas, a sombra vacilante dos coqueiros, a penumbra contemplativa e os assobios fantasmagóricos do vento nutriam-me os pavores, sem dizer do repertório de lendas contadas por Ananias e Tidó, pescadores de outras eras. Acrescento às histórias deles, as narrativas de Mazinha, funcionária de minha avó, excêntrica a ponto de convidar a mim, um menino com menos de 10 anos, para ser padrinho do filho dela. É da autoria da comadre, com a melhor intenção de nos aquietar, a fábula da sapa gigante que morava no quintal e se alimentava de crianças traquinas. 

Medroso, mas curioso, não me furtava, junto a outros meninos e meninas, de frequentar sessões mediúnicas clandestinas promovidas por uma senhora que trabalhava em um lar próximo. Sentávamos em círculo, no chão frio de cimento queimado, enquanto ela abria os trabalhos rezando o Salve Rainha. As almas chegavam e, cordialmente, respondiam às perguntas formuladas, movendo um copo de vidro posto no solo com a boca para baixo. Certa feita, agora em nosso alpendre, esteve uma vidente que revelou a presença iluminada de Cid Augusto, tio materno falecido na infância, que me empresta o nome.

Não poderia faltar neste repertório, o “grito” da Fazenda Trevas, propriedade rural situada na região do cemitério e do campo de pouso, à época pertencente a Iogo Rosado, primo de saudosa memória a quem eu chamava de tio, por força do afeto. Pai de Ioguinho, amigo que não vejo há tempos, embora o tenha sempre à vista pelos olhos do bem-querer, Iogão costumava levar-nos até a propriedade para caçadas e para testemunhar, auditivamente, o “grito” sinistro que rasgava as madrugadas silenciosas. Especula-se que o fenômeno era humano, produzido pelo destemido vaqueiro Sansão.

Nestes 50 e poucos anos, Tibau mudou, perdeu morros, vertentes, personagens. A julgar pela ausência das jangadas e dos pescadores, o mar não está mais para peixe. Talvez seja o preço da urbanização, do progresso. Eu também mudei. Hoje só tenho medo de gente viva e percebo que os pesadelos da infância eram de certo modo confortáveis diante das ameaças reais da vida adulta. Volto pouco aqui, especialmente na alta estação, época barulhenta, de trânsito caótico, de pessoas nervosas, na qual só encontro paz e tranquilidade nas conversas com a turma antiga, no Peter’s Bar, do meu bom e velho camarada Netinho.