domingo, 18 de agosto de 2024

Os mortos


Parei de escrever sobre os mortos. Já o fiz muitas vezes, quase como dever íntimo, quando partia alguém querido, admirado, importante, mas jurei – de pés juntos, mãos postas e olhos rútilos – nunca mais fazê-lo. Há mortos que nos consomem palavra por palavra, e talvez eu seja uma vítima da consumação do silêncio.

Aconteceu assim quando minha avó Lourdinha morreu. Fiquei horas contemplando a tela do computador, e nada. Parti para a velha fórmula caneta/papel, que igualmente se revelou inútil. Pressenti a tristeza escalar a garganta e engolir o verbo no goto seco. Meu texto nunca seria digno do amor que devotamos um ao outro.

Dona Lourdes era uma dádiva, a pessoa mais linda, o coração mais puro, a alma mais iluminada. Dizer a respeito dela seria trabalho de ourives cravejando diamantes em frases de ouro e prata. Melhor, de jardineiro transformando o deserto de luto e dor em canteiros nos quais a saudade ganha novos sentidos e perfumes.

Não me sinto ao nível de tal responsabilidade. Por isso, desisti. De toda forma, preciso mencionar algo talvez desconfortável de se ler: os mortos estão mortos, despidos da carne e dos traços narcísicos da personalidade humana. Estão finalmente livres da ambição, do ego, da vaidade, e fora do alcance etéreo do discurso.

Como diz Drummond, “Na ambígua intimidade/ que nos concedem/ podemos andar nus/ diante de seus retratos”. Afinal de contas, eles “não reprovam nem sorriem/ como se neles a nudez fosse maior”. Quando eu morrer, poeta, espero que me permitam desfrutar dessa nudez invisível e do silêncio oblíquo das entrelinhas.