sábado, 27 de dezembro de 2008
Folhas de outono
O livro de Francisco Rodrigues é uma maravilha, desde a capa de Túlio Ratto ao posfácio de José Leite. Aliás, Seu Chico é, em si, uma beleza, inteligente sem arrogância, “lido” sem afetações literatescas, cordial sem fingimento e humilde o bastante para compartilhar memórias, libertando-as ao sabor dos ventos, de carona em Folhas de Outono.
O parecer carece de fundamentação crítica, sustenta-se apenas na passionalidade afetiva de quem se limita a falar “gostei” ou “não gostei”, por desconhecer as variáveis dos entendidos para indicar os elementos que diferenciam obra e obra. Pois muito bem, gosto do autor, mesmo sem maior convivência que justifique o bem-querer, e gosto do livro.
Quem lê as recordações de Seu Chico tem a sensação de ouvir histórias daquele parente mais velho cujas experiências nos servem de parâmetro. Até as tiradas ficcionais desse retratista das letras ajudam a compreender o passado de nossa terra, o passado de nossa gente e, assim, a contextualizar os retalhos de nosso próprio varal de lembranças.
A leitura me remete às conversas com meu avô paterno, o velho Lahyre, falecido aos 92 anos, véspera dos 93, lúcido até o último dos suspiros. Sua cabeça era algo invejável, capaz de manter intactos as cores, os sons e os cheiros dos acontecimentos. Para se ter idéia, trazia de cor as fórmulas dos remédios que produzia na extinta Farmácia Rosado.
Em Folhas de Outono, não necessariamente com pontos de vista iguais, há ecos dos relatos de doutor Lahyre. Porto Franco, estrada de ferro, ruas antigas, embates políticos. Algumas figuras se cruzam, a exemplo de Terto Diabo, sogro do monsenhor Barreto, religioso vítima de uma das maiores injustiças praticadas na libertária terra dos monxorós.
Diga-se, ao fim e ao cabo, de meu respeito pelos memorialistas, e, à vista de sua bela coleção de momentos, Seu Chico é digno da nomeada. Eu, que perco os óculos no rosto, que sofro para ligar nomes a pessoas e que não raro me esqueço do autor quando acabo de ler seu livro, deixo, por escrito e impresso, este humilde gesto de reconhecimento.
domingo, 7 de dezembro de 2008
Beleza é fundamental
O poeta Vinicius de Moraes comprou uma briga de foice com segmentos feministas ao pedir perdão às "muito feias", em Receita de Mulher, para declarar que "beleza é fundamental". Poucos compreenderam a subjetividade do texto, pois o belo, inclusive no reino das criaturas estereotipadas, alimenta-se das fantasias e das expectativas de cada sujeito.
Disseram-me que tenho a triste fama de namorar mulheres feiosas. E isso aconteceu na madrugada de sexta-feira, na festa de Santa Luzia, padroeira das claridades visuais. Fiquei surpreso, embora sem queixas, afinal o comentário veio de uma bela mulher e me foi repassado por outra não menos atraente, de acordo com meu "duvidoso" sentido estético.
Ao amanhecer, tentei decifrar a enigmática face da feiúra. Comecei pelo rosto que me apareceu no espelho do banheiro, com dois pares de rugas aspando olheiras gigantes e estas, por suas tristes vezes, servindo de molduras a olhos vermelhos, parecidos com aqueles descritos por Machado, o Bruxo do Cosme Velho, "de ressaca, oblíquos e dissimulados".
Parti para o espelho do quarto, que é dos grandes, e enxerguei o indigitado sujeito na superfície envidraçada do objeto narcisista, agora de corpo inteiro, nu, ostentando aquele físico de anjo barroco: baixinho, gordinho e sexualmente resumido, além de ser cabeção e branquela feito ratazana de laboratório. Ixe, ainda bem que há gosto e setembro para tudo.
Existem, nas conjecturas de Baudelaire, "tantos tipos de beleza quanto modos habituais de se procurar a felicidade". Nesse contexto, toda mulher, inclusive as consideradas "muito feias", tem algo de fascinante a oferecer, especialmente aos homens que se esbaldam na riqueza do detalhe. "Quem ama o feio", diz um sábio e antigo ditado, "bonito lhe parece".
Não nos esqueçamos dos padrões culturais. O belo na ótica brasileira é diferente do conceito americano, do alemão, do africano, do chinês e por aí vai. Claro, há gente como eu que é horrorosa em qualquer parte do globo, mas, no passo dos desafinados, nós, os desabonitados, também temos coração e queremos ser felizes, crescer, amar e multiplicar.
No mais, cabe-me dizer, sem o interesse de com isso me gabar, que vivo com uma mulher linda, cheirosa, gostosa e, como se não bastasse, de rara inteligência. Foi ela quem me enquadrou na sub-raça dos boêmios de asa quebrada, com a magia de seus beijos, o calor de sua carne e a maravilha do amor que conservou por 20 anos para me entregar.
sábado, 29 de novembro de 2008
A musa do meu amigo
Linda, tesuda e, aparentemente, sensível aos apelos da carne. Passa derramando o mar de seus olhos verdes sobre nós, reles criaturas mortais, a ponto de quase nos afogar em terra firme. Todos a amamos, um de meus amigos em especial, na distância platônica que ele mesmo criou e não consegue vencer. Fidelidade! O rapaz é fiel à namorada.
Nunca nos dá o menor cabimento, apenas segue caminho, aprimorando o molejo sobre os saltos, e isso em gesto de pura maldade, para aumentar a fome canina dos olhos da rapaziada. Quando muito, a danada projeta a claridade do sorriso em resposta aos bons-dias. “Meu Deus”, o pessoal grita o verso de Vinícius, “eu quero a mulher que passa!”
Meu amigo, coitado, sofre horrores. Os que desejam a dita cuja, sem deixar de torcer pelo companheiro, sofrem por solidariedade. É deveras triste vê-la grudada ao tórax de sujeito qualquer, invadida por beijos sebosos, atada em abraços repressores, profanada à flor da pele por mãos cheias de dedos e sabe-se lá por que mais, longe dos seus vigias.
Aqui para nós, e no melhor sentido da expressão, a tal musa é uma grandessíssima e maravilhosa safada. Alta noite, bar da praça, violões em sol, enxerguei-a por entre sombras, trocando-se em miúdos com um sujeito atarracado e carrancudo. Nem bem amanheceu, encontrei-a noutro canto, dependurada num almofadinha de paletó e gravata.
O leitor pode imaginar, diante das palavras que acabam de cair no papel, que estou com inveja, como se as musas não pudessem sucumbir a calores humanos, a não ser os meus. Na verdade, estamos, eu e a platéia de babões, com a estranha sensação de cornice indireta, mas tudo isso com o maior respeito ao nosso amigo e à sua paixão platônica.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
O fantasma, o livro e as flores
domingo, 9 de novembro de 2008
Memorial
Aprendi com Drummond que o meu coração é muito menor que o mundo, pois “Nele não cabem nem as minhas dores”. Foi também o poeta de Itabira, ao receber de um anjo torto a missão de “ser gauch na vida”, quem me ensinou que por isso gostamos de nos contar, de nos despir, de nos gritar. “Por isso freqüento os jornais”, diz ele, “me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos”, mas sem me descuidar da trama, das leis do imaginário.
As lembranças expostas à claridade, sem um tiquinho de autonomia criativa, perdem a mobilidade. Já dizia Saramago, n’O Ano de 1993: “Quando o sol se move como acontece fora das pinturas a nitidez é menor e a luz sabe muito menos o seu lugar”. Melhor a inquietude da luz em movimento, ressaltando pontos diferentes de imagens diversas, conforme o estado de espírito do observador, do que a palidez estática da nobre absoluta verdade.
domingo, 2 de novembro de 2008
Um beijo
sábado, 25 de outubro de 2008
A enchente*
tricotomizado (dividido em três cursos d'água) por idéia de Wilson
Rosado, genial autodidata, e obra do prefeito Dix-huit Rosado,
transbordou, inundando vários pontos da cidade. O Centro, por exemplo,
parecia um projeto de Atlântida, a mitológica cidade subaquática.
Havia piabas até no entorno da praça do Pax, nosso querido e extinto
cinema de saudosos vesperais.
O jornal O Mossoroense, coitado, teve enorme prejuízo. Recebemos, eu e
Chico Guerra, a infrutífera missão de proteger a sede da empresa.
Recrutamos Seu João, competente mestre-de-obras, para lacrar as
entradas do edifício. Havia duas – a da recepção e a da lateral, que
dava acesso à escada dos andares superiores. Naquela época, a redação
funcionava no primeiro andar. O segundo, meio que abandonado, servia
de depósito.
Pois bem, Seu João fez o serviço. As paredes ficaram ótimas, mas de
nada adiantaram. A água estourou o piso e subiu mais de metro,
danificando vários equipamentos, a exemplo das impressoras Big Chief
29 e Marinonni, aquela americana, esta francesa, nunca italiana,
conforme equivocadamente escrevi certa vez. O pior foi constatar a
perda quase total dos arquivos. Cem anos de História tragados pela
sede insaciável da enchente.
Naquele instante, já me encontrava alistado da Defesa Civil, que ao
contrário de hoje funcionava de verdade, sem a necessidade de
intermináveis reuniões de "planejamento". Trabalhei voluntariamente
preparando cestas básicas, com víveres doados pela população, por
empresários e pela própria prefeitura, para serem distribuídas como
forma de amenizar as terríveis necessidades pelas quais passavam as
pessoas desabrigadas.
As áreas atingidas, por incrível que pareça, são as mesmas de hoje,
demonstrando a inércia do poder público no tocante a providências
definitivas. Justiça seja feita, Dix-huit fez a parte dele. A
tricotomização é uma das grandes obras realizadas no município. Não
existisse, pessoas estariam, igual a 1985, trafegando de canoa pelas
ruas alagadas e pescando em salas-de-estar, coisa que também
presenciei entre assombrado e curioso.
Houve uma campanha nacional para arrecadar donativos. Vários artistas
emprestaram sua voz para o poema de Patativa: "A sorte do nordestino /
é mesmo de fazer dó / Seca sem chuva é ruim / Mas seca d'água é pior".
Nunca me esqueci, estrofes vez por outra martelam meu juízo, se é que
nalgum tempo tive esse negócio. Ainda devo possuir o compacto, a
bolachinha, 33 r.p.m., guardado em algum dos lugares por onde andei.
A situação era grave, gravíssima, e olhe que inexistiam complicadores
modernos, tipo dengue e risco de transmissão de outras doenças por
causa do lixo urbano e da imundície que a chuva arrasta dos bueiros
infestados de ratos e baratas. O rio pelo menos era limpo naquela
época, embora prestes a se transformar numa enorme fossa a céu aberto,
imundície perigosa e, acima disso, humilhante para quem sente a dor de
Mossoró.
Encerro antes de ceder à tentação de narrar o caso da senhora que
apareceu para uma sessão de fotos em meio à tragédia e pegou o beco
sem resolver patavina, dizendo ser natural o povo sofrer. Acinte
completo. Paro também porque recebi a notícia de que a enchente, por
causa do canal irregular feito no Paredões pela prefeitura, avança
rumo ao sítio onde guardo meus livros, único patrimônio que amealhei
em 22 anos de luta.
* Texto escrito aos 3 de abril de 2008 e "esquecido", até ontem, na
"memória" do computador.
sábado, 18 de outubro de 2008
A professora
Os rapazes iam ao delírio. Corações palpitantes, mãos frias, pernas tremendo, suspiros, pensamentos em voz alta. Tudo isso por causa da professorinha que atravessava o corredor azul-marinho da escola, flutuando em passos macios de generoso gingado, até romper o umbral da sala de aula, distribuindo bons-dias perfumados com o aroma daquela boca pequena, enfeitada em tom delicadamente vermelho.
A turma retribuía o cumprimento - “Bom-dia, fessora!” -, sem sair do transe. Aí, quedava em adoração, enquanto a jovem senhora realizava a chamada, entornando o castanho sem-fim de seus olhos sobre o verde-pálido da folha de freqüência. Nome por nome - “Fulano... Beltrano... Sicrano...” - envolvido num sotaque não se sabe de onde, chiado nos dês e nos esses, circunflexo nos agudos, que maravilha.
As meninas, em floração, fantasiavam ser do mesmo jeito. Inveja benfazeja em relação a uma deusa em carne, osso e sedução. Cochichando em bilhetes libidinosos que, fileira a fileira, alcançavam cada quadrante do ambiente, os meninos exclamavam: “Que lábios! Que voz! Que pele! Que coooorrrpo! Que aula!”. Choque de luz nos sentidos das criaturas, nublados por violentos bombardeios de hormônios.
Errado dia, nas férias, a mestra-escola partiu. Para onde, sabe lá o destino, esse gênio iconoclasta que subjuga até mesmo as divindades, sem a gentileza de explicações quaisquer. Dizem, mudou-se para o Rio de Janeiro ou São Paulo. Dizem, viram-na num show do Pink Floyd no Camden Tow, Londres. Dizem, voltou para o monte Olimpo, convencida pelos deuses de Homero a ocupar seu lugar de direito.
Penso que ontem, talvez anteontem, possivelmente semana passada. Conversa, isso aconteceu... dia desses. Pronto, combinemos assim, ela voltou dia desses ostentando novo corpo, agora de aparência balzaquiana, dirigido por olhos de Capitu. A voz costurando o velho chiado dos dês e dos esses na antiga circunflexão que perverte os agudos tornou-se levemente rouca, festa para os tímpanos da moçada.
A galera tresvaria em déjà vu, atenta muito mais na boa “tia” do que nas boas lições dela, embora inteligência e beleza incrementem a fórmula do desejo. Será que a dita percebe, como se fosse musa da canção buarqueana, os arroubos desses bandidos invadindo-lhe os ouvidos e as janelas do vestido? Se não os sente, se não se arrepia, besteira, eles seguem a sonhar a sós, porque aluno é criatura renitente.
sábado, 4 de outubro de 2008
Destino
O soneto perdido nos confins
Do livro amarelado na estante
Será redescoberto num instante
Por batalhões de traças e cupins.
Os bichinhos famintos de aforismo
Provarão degustando verso a verso
Conhecer para frente e ao inverso
O valor nutritivo do lirismo.
E o poema de amor enclausurado
Entre as folhas do livro condenado
Seguirá finalmente outros trajetos.
Servirá, quem já fora nalgum tempo,
Da nobreza do espírito alimento,
Para encher a barriga dos insetos.
sábado, 27 de setembro de 2008
Palestra internacional
O auditório do Hotel Thermas é enorme e linear, arrumado de modo curioso, com cadeiras altas na parte da frente e assentos baixos atrás. A turma do fundão, por causa desses detalhes, não enxergava quase nada do que transcorria na tribuna de honra, onde conferencista, debatedor e presidente da mesa preparavam-se para discorrer sobre o tema La red de mercociudades: globalización, integración regional y desarrollo local.
A localização do astro da noite, o argentino Carlos Nahuel Oddone, ninguém da metade para a retaguarda conseguia dizer com certeza. Tinha-se apenas idéia, graças à única pessoa visível além do mar de cabeças formado ao longo daquela sala enorme de comprida: juiz Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho, que, do alto de seus aproximadamente dois metros, dava pistas a nosotros, lançando olhar diagonal para a esquerda.
O conterrâneo de Jorge Luis Borges, de Ernesto Sabato, de Ricardo Rojas e de minha ex-colega Anica, aluna mais tesuda do Eurocentres de Brighton, começou pedindo desculpas por não falar necas de pitibiriba em português, motivo pelo qual sua conferência seria em espanhol. Aí, o convidado passou a defender a importância de uma ampla reforma político-institucional com o objetivo de incluir os municípios na agenda do Mercosul.
Pouca gente compreendeu. Nem sei o quanto entendi. Só sei que a confusão ampliada pela má qualidade do som, problema solucionado muito depois, deu origem a um terrível burburinho. As pessoas da traseira, sem verem nem ouvirem, muitas não capturando bulhufas do espanhol portenho, começaram a reclamar em voz alta e, em seguida, a abandonar o local. Saíam “em revoada”, como diria o meu saudoso amigo Gomes Filho.
O clima ficou chato, constrangedor. O barulho crescente piorava a audição e o abandono massivo da assistência denotava grosseria para com alguém que, apesar das barreiras lingüísticas, esforçava-se para se comunicar. Lembrei-me então do professor Vingt-un Rosado, mais especificamente da história acerca de uma palestra internacional que ele me contou há muitos anos, com o testemunho das ondas do sagrado mar tibauense.
Pediram a Vingt-un para reunir intelectuais a fim de ouvirem um sujeito da França. No dia e na data marcados, o auditório estava repleto. Pessoas bem vestidas, educadas, ouvindo em elegante silêncio, aplaudindo nas horas certas, rindo quando se era para rir. Ao final da conferência, ministrada em francês, o camarada agradeceu a Vinte-e-Um, sem disfarçar o susto por encontrar tantos falantes da Língua Francesa em Mossoró.
Dando aquela risada gorda que lhe apertava os olhos, o criador da Coleção Mossoroense cochichou, não exatamente assim, embora com o mesmo sentido: “Esses intelectuais são cassacos da fábrica de gesso, aos quais pedi que viessem prestigiar seu amigo”. Analfabetos na maioria, os operários da gipsita não tiraram proveito da falação, mas agiram com a paciência dos sábios, algo que muito dotô do Direito precisa aprender.
sábado, 20 de setembro de 2008
A biblioteca
Comecei por volta dos 15 anos a juntar os livros de minha singela biblioteca, único bem material – ou conjunto deles – amealhado desde quando comecei a trabalhar no O Mossoroense, pouco abaixo dessa idade. Vim querendo sei lá o quê, pois meu sonho era a medicina, seguindo tradições familiares. Mas jornal apaixona e aqui estou desde então.
Cheguei sem escrever um “o” com uma quenga. Também detestava leitura, para desgosto da família. O pouquinho que sei aprendi aqui, graças aos ensinamentos do ofício e a duras rotinas de estudo. Do amor ao jornalismo, veio o amor à literatura e surgiu a coleção livresca que já atravessou dois casamentos, várias mudanças e uma inundação.
Os volumes encontram-se guardados na Rua dos Bobos, nº 0, na casinha branca de janelas e portas amarelas construída por Vingt-un Rosado e duplicada por mim. Fica no ponto mais alto do Sítio Mororó, antigo Canto de Lahyre, lugar exato da morada antiga onde minha bisavó paterna se refugiou, em 1927, para se proteger do ataque de Lampião.
Muitos visitantes, vendo paredes tomadas por aço e papel, perguntam-me quantos livros tenho e se li todos eles. Em relação à primeira dúvida, respondo não saber. Nunca os contei, talvez sejam cinco, seis mil, talvez mais, quem sabe menos. Coisa nanica diante dos acervos registrados pelo poeta Lívio Oliveira. Gigantesca frente à minha estupidez.
A segunda resposta também é negativa. Não, eu não li boa parte dos títulos que possuo nem me sinto obrigado a fazê-lo ou declará-lo para impressionar a platéia. Francamente, às vezes percebo não haver lido sequer os que li, em face do esquecimento e da confusão de vozes. Além disso, como diz Pierre Bayard, o “livro se reinventa a cada leitura”.
Na metafísica de Borges, o mundo é a biblioteca sem fim na qual os homens, mesmo empenhados na busca do conhecimento, jamais conseguirão escalar todas as prateleiras. Na melhor das hipóteses, sobreviverão sem traumas à perspectiva medonha “de que tudo está escrito”, mas que seu acesso se resumirá a quantidades miseráveis de textos.
Extinta a raça humana, a Biblioteca de Babel permanecerá “iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”. Espero de igual modo que, extinta minha humanidade, a pequena biblioteca da Rua dos Bobos, edificada livro a livro com tanto zelo, continue e se engrandeça aos olhos dos que virão.
sábado, 13 de setembro de 2008
A espada de Chambord
Minha mãe é pacifista militante. Abomina armas, sejam de fogo ou brancas, sejam de verdade ou de brinquedo. Seus instrumentos de defesa são coragem desmedida, inteligência vibrante e palavra certeira. Jamais entregaria, portanto, qualquer objeto mortífero nas mãos de um filho, constatação que a transformava em grande suspeita dos seguidos desvios da espada imaginária que tio Jório freqüentemente me enviava de Fortaleza.
Eu ficava danado da vida por ser criança pequena do Rabo da Gata sem independência para empunhar a peça rara que, segundo o remetente, pertencera ao saudoso General Sei Lá das Quantas. O drama se repetia cada vez que meus pais iam à capital cearense, na época em que se tinha Mossoró como a maior cidade alencarina em solo potiguar. Nossa TV era a Verdes Mares, nossas ambições mercantis, o Roncy e a Mesbla.
Ocorre que Jório da Escóssia, figura lindíssima, brincalhão inveterado e, o mais importante, irmão de vó Lourdinha, telefonava, avisando-me: "Cidoca, quando sua mãe chegar por aí, cobre a ela a espada que lhe enviei." Nossa Senhora das Bicicletas! O coração ficava em tempo de explodir a cachola do peito, tanta a ansiedade naquela espera sem fim que sempre terminava em frustração, pois o presente nunca foi entregue ao destinatário.
Mamãe, coitada, sofria horrores, tentando convencer-me de que tudo aquilo não passava de brincadeira de "Jorinho", forma pela qual o trata a esposa, tia Maria Teresa, pessoa igualmente querida. Nada, no entanto, aplacava o mau humor do menino besta que se imaginava gente grande e a quem somente importava a famosa espada do saudoso General Sei Lá das Quantas que o tio-avô enviara, em demonstração de carinho e confiança.
A brincadeira integrou-se às tradições familiares. Mesmo vendo meus cabelos brancos, tio Jório ainda pergunta se me deram seu presente e, de certo modo, já posso dizer que sim. Recebi há pouco, das sagradas mãos de minha mãezinha, uma bela espada de brinquedo, com timbre de Chambord. Partindo dela, não seria de aço, mas tem a nobreza de trazer a infância à boca do estômago e de me arrebatar meia dúzia de lágrimas.
sábado, 6 de setembro de 2008
Língua
Minha língua é a foz da velha trama
Da saliva que brota no arrepio,
Quando a boca no peito se derrama
Inaugurando o leito deste rio.
Desce ao sopé florido da montanha,
Sobe noutra, mas antes que se instale,
Seduzida no ardor, já não se acanha,
Desembesta dançando pelo vale.
Vai correndo com lânguida destreza,
Levando em ziguezague a correnteza
De suor, d’água doce e de fissura.
Rodopia sem pressa, segue em frente,
Atravessa a floresta e, de repente,
Penetra o mar que geme de loucura.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Borboletas negras
Janeiro era o mês das borboletas. Vinham aos montes. Negras, enormes, e tomavam conta das paredes e do teto da casa. Ninguém as espantava, talvez por saberem-nas passageiras, talvez porque a residência era pouco freqüentada no período. Todos em Tibau, os meninos pelo menos. Em fevereiro, quando se voltava à rotina escolar, ainda havia muitas delas enfeitando o terraço e a sala, uma ou outra, aqui e acolá, aventurando-se em vôos rasantes.
O que se encontrava no retorno ao lar era, na verdade, a terceira geração desses seres alados, quem sabe a quarta. Sim, pois a borboleta vive em média duas semanas após a metamorfose, na fase denominada "imago", palavra adotada na psicologia para definir aquelas imagens que a pessoa idealiza na infância acerca de alguém querido e que se conservam, intactas, pelo resto da vida, como que congeladas e imunes ao sopro corrosivo do tempo.
Reza a tradição, e mestre Mário Souto Maior não me deixa mentir, que as borboletas negras, tão pretas quanto as da casa da infância ou quanto a que pousou na testa de Brás Cubas, são mensageiras de maus presságios e da morte. Algumas culturas consideram-na espíritos de bruxas ou de anjos pagãos. Para nós, moleques do Rabo da Gata, nada disso batia na cachola; eram somente borboletas que entravam pela passagem de ano e depois sumiam.
Sonhar com borboleta de qualquer cor, na sentença de vários intérpretes, significa "sorte no jogo". Para outros, representa "metamorfose". Zhuang Zi, filósofo chinês nascido no ano 370 a.C, narrou a seu povo, com a perspectiva de figurar "o resultado da transformação das coisas", a fábula na qual ele próprio sonhara ser borboleta e, ao despertar, já não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se uma borboleta que imaginara ser homem.
Sei lá se feiticeiras reencarnadas, se almas de crianças pagãs. Sei lá se mensageiras da má sorte, da sorte, da morte, da vida. Sei lá. Só sei que por estes dias de agosto, uma enorme borboleta negra, "escanchaneta" das borboletas de antigos janeiros, entrou pela janela, fez o reconhecimento do ambiente, pousando, enfim, como se fosse o primeiro quadro fixado na palidez vertical do recinto, como se fosse a infância estampada na parede.