quinta-feira, 23 de setembro de 2021

“Jubiaba, não, seu analfabeto! É Jubiabá!”

 

Que outros se gabem das

páginas que escreveram;

orgulho-me das que li.

Borges

 

Palavras são o meu ganha-pão desde os 14 anos, quando passei a trabalhar no jornal O Mossoroense. Aquele emprego foi o último recurso paterno para tentar salvar o filho rebelde das trevas da ignorância. Rebelde sem causa, diga-se de passagem. O importante é que a partir dali a leitura e a escrita passaram a ser ofício e lazer, desespero e salvação, loucura e terapia.

Não, eu não gostava de ler. Sendo mais exato: odiava! E esse sentimento, como desabafei certa vez em uma crônica dominical, decorria do tratamento elitista e esnobe que se dá ao leitor iniciante nas instituições de ensino, a começar pela imposição de textos inadequados à idade das pessoas, bruta sacanagem que leva o indivíduo a pensar que não nasceu para a coisa.

Lá pelos 10 anos, por exemplo, a escola me obrigou a ler, em letras mínimas, as 635 páginas de Moby Dick, do escritor estadunidense Herman Melville. Para se ter ideia, a edição original publicada em 1851 tinha o título de A Baleia e era dividida em três volumes. Perco o fôlego só de lembrar a narrativa de Ismael sobre a peleja do louco Capitão Ahab com a magistral cachalote.

Depois, Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo e Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo. Quase furo a página com os olhos de tanto revisitar o sexo entre Ana e Pedro – foi dos primeiros alumbramentos da infância, parodiando Bandeira. Tais obras, embora geniais, não servem para crianças nem adultos iniciantes na delicada arte de desvelar sentidos latentes além da escrita.

Certa feita, na aula de português, foi-nos exigida a leitura de Jorge Amado. No final, tentando agradar a professora com meu falso interesse, perguntei onde adquirir “Jubiaba”. Ela, mãos na cabeça, testa franzida, olhar fulminante sobre a armação grossa dos óculos, retrucou: “Jubiaba, não, seu analfabeto! É Jubiabá!”. E assim embarquei na aventura de Antônio Balduíno.

O bloqueio em relação aos livros começou a ser superado por volta dos 15 anos. Lembro que era janeiro, porque estava com a família em Tibau, quando pedi a Vingt-un Rosado, fundador da Coleção Mossoroense, que me emprestasse uma obra de história de Mossoró. Queria saber mais sobre a libertação dos escravos, o Motim das Mulheres, a batalha com os cabras de Lampião.

No outro dia, ele me deu 50 títulos relacionadas à cidade e ao Nordeste. O velho mestre, amigo querido de saudosa memória, apresentou-me ao melhor da literatura potiguar. Diante dos olhos maravilhados do menino burro desfilavam textos de Nonato, Raibrito, Cascudo, Guerra, Fausto, Milton Pedrosa, Maria Sílvia, Zila, Brasília Ferreira, Lauro da Escóssia, Jaime Hipólito.

Minha mãe, testemunha de tudo, aproveitou para dar o empurrão que faltava. Era necessário ler tudo aquilo com bastante atenção – dizia-me em tom grave –, pois o doador costumava inquirir as pessoas sobre os exemplares doados. Vingt-un nunca perguntou patavinas, mas continuou fornecendo livros e eu continuei a lê-los, linha a linha, até me encontrar no universo da linguagem.

Adiante, transitando do clássico ao popular, matando a sede em fontes de prosa e verso, fica difícil dizer das leituras que me tangem o pensamento, que se digladiam no discurso ilusoriamente meu, que empunham a caneta quando escrevo, que me constituem sujeito. Assim, sou o que sou, e o que sou é o conjunto disforme de leituras dos mundos, das pessoas e dos signos.



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