sábado, 23 de junho de 2012

Se for escrever, não beba. Se for beber, não escreva!



Abri sem querer o arquivo das velhas crônicas, espécie de baú eletrônico onde encontrei tantas memórias que meu juízo frágil não suportou: desenrosquei a tampa do litro de uísque e despejei no caneco de ágata dose dupla de lembranças empoeiradas.

Bebi-as num gole e, de repente, diante de mim redesenharam-se músicas, mulheres, noites intermináveis, amigos, pessoas desaparecidas na imensidão da humanidade, a madrugada sem fim, o medo de ser normal, de me fazerem igual aos outros homens.

Outro gole me trouxe Maringá, Natacha, a guantanamera, a tigresa de unhas negras, o choque entre o azul e o cacho de acácias, a primavera, Eurídice - meu silêncio, a menina que, linda, virou mulher, Nefer! Nefer! Nefer!, a flor do mocambo, a mais bonita.

Ainda um e a lembrança de que, ontem, a noite apaixonou-se pela chuva, mas veio o vento, tomou a chuva em seus braços e os dois, diante dos olhos da noite, amaram-se fazendo evoluções eróticas iluminados pelos refletores da velha Praia dos Artistas.

Muitos depois, passei a enxergar versos se desmancharem na prosa, como se para ela fossem feitos. Sílabas poéticas seduzidas em escocesa embriaguez promovendo espécie de traição à lírica, como quem larga o poeta e se aboleta no colo de um cronista.

E este, o prosador das banalidades, despido dos pudores acadêmicos, alisa-lhes as partes íntimas e excita a flor de cada letra, que se arrepia e geme. Depois, com a boca cheia d’água, roça-lhes os fonemas com aquela língua grande, grossa, grogue.

A poesia surpreende os amantes, reclama seu pedaço. Namoram a três, mas ninguém vai ao clímax. Esqueceram-se de convidar a inspiração para a suruba e, sem musas, vocábulos são verbetes brochas no fundo dos dicionários, não alimentam os orgasmos.

É coisa do uísque, só pode. Conheço-lhe as faces e até reformulo o brocardo: “No uísque, a verdade!”. Sinceramente, prefiro as mentiras dele que me deixam menos realista e mais sonhador, pois, às vezes, o bom malte me vale por mil sonhos. Fecha-se o baú.

3 comentários:

Prof Pe Paulo disse...

Muito bom seus textos, gostosos de ler e excelentes para um mergulho no cotidiano.

Canto de Página disse...

Muito obrigado!

Anônimo disse...

Caro amigo Cid. Vez por outra, quando minha Tâmisa disponibiliza o laptop, dou uma lida em seus escritos. Esse 'Se for escrever, não beba. Se for beber, não escreva!, está, simplesmente, ótimo. Faltou apenas, incluir no rol musical, John Lennon, Paul McCartney, George Harisson, BEATLES. Simples assim... Um beatle abraço. Togo Ferrário.