sábado, 3 de março de 2012

Fora do texto



Passaram-se mil anos até que eu entendesse a natureza etérea das palavras. Naquela sala quente e escura situada nos fundos do colégio, para onde me transporto acidentalmente, atraído por fantasmas renitentes, jamais as imaginaria por trás da máscara monstruosa com a qual se apresentavam aos meus olhos de criança. Revejo-me humilhado, perdido entre as letras do alfabeto. Não raro, estava ali, no “Cantinho do Feio”, de castigo por tropeçar nas letras do alfabeto que não conseguia aprender de cor.

Havia uma menina cuja companhia todos disputavam por sua beleza, simpatia e inteligência, um anjo de candura que abria mão do intervalo e descia ao mundo dos mortais, ao meu socorro. Ditava e ordenava os vocábulos, traduzindo-os, quando necessário, em sinais gráficos elementares, os quais imprimia segurando-me a mão que apertava o lápis enquanto este se derretia nas folhas do caderno. Nunca esquecerei o gesto de solidariedade e ternura que evitou maiores vexames na presença dos colegas.

A mocinha é a única lembrança agradável dessa história reencontrada, acidentalmente, sob entulhos de memória. As punições e seus efeitos psicológicos devastadores levaram-me a odiar substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, com todas as minhas forças e fraquezas - mais fraquezas do que forças. Durante uma eternidade, reneguei livros, jornais, revistas, estudos, qualquer espécie de leitura. Gramática tornou-se desaforo. Escola era sinônimo do enfado que se agigantava na tarde quente de Mossoró.

Séculos depois, movido por sentimentos tão repugnantes quanto aqueles, dissequei uma frase, espalhando as tripas da infeliz no chão da biblioteca, e descobri o mundo de sentidos em suas entranhas. Descobri, nesse exercício anatômico, que os signos da linguagem têm sangue e alma. Apaixonei-me por linhas, mesmo as vagabundas mal traçadas, e aprendi a me encontrar nas entrelinhas. Hoje, ajoelho-me diante das palavras e imploro que me seduzam e me libertem da solidão que escraviza fora do texto.

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