segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Alucinação



Sonhei com a cachorra da moléstia e arranquei lágrimas do tempo entre sorrisos revirados nas entranhas e palavras fragmentadas nos cacos da felicidade partida a golpes de distância. Segui aperreado nos corredores do labirinto do tal sonho com ares de pesadelo. Meus gritos de pavor morriam em preto-e-branco no eco de paredes mudas enquanto o hálito da besta disforme arrepiava-me os instintos.

Corria, corria, mas nada avançava. Quanto mais corria mais cansava, menos fugia. Busquei no horizonte o coração do dia e encontrei no fundo do olho esquerdo a bicicleta azul acorrentada ao tronco da acácia morta. Não dava fuga. Tentei o olho direito onde estava a taça de fogo. Bebi três lapadas de claridade por engano. Quis novamente correr, desconcentrei-me, caí enjoado sobre o colo da terra.

Caído sobre a terra, ofegante, gritei o versículo xis do capítulo ipsilon do evangelho apócrifo dos boêmios: "A noite é minha pastora e nada me faltará!". Ah, se fosse noite! A noite me conduziria invisível na melodia de seus versos rimados de estrelas, protegido da fera dos seiscentos diabos ressurgida dos confins do subconsciente, lá onde as coisas maléficas devem permanecer todo o sempre.

Infelizmente alguma coisa toca em clave de sol fora de mim. Daí, a luz externa, o corpo visível, vulnerável e impelido à lembrança, mesmo diante da resistência do espírito que se recusa a visitar novamente aquele corpo. Resistir a tudo, menos às tentações, conforme ensina o velho Oscar Wilde, é o que pode ocorrer àqueles que se sentem dominados além dos sentidos, sem controle sequer das pernas.

Quem fez dormir o pobre menino em pleno reino da manhã, quando almas sebosas e libertinas fogem do limbo para se aproveitar dos inocentes herdeiros da madrugada? Quem evocou o súcubo, a besta de olhos castanhos conduzida ao mesmo cruzamento de caminhos imaginários da criança? Maldito seja! Maldito seja! Maldito seja o inventor dessa agonia, desse suor, desse medo, dessa queda.

Ainda bem que meu amor, percebendo os espasmos, o risco, perfumou-se de absurdo, fechou as vistas e apareceu na mesma alucinação a tempo de evitar o ataque da quimera à carne enfraquecida pela incandescência dos flashs. Sem dizer palavra, adiantou-se flutuando nos corredores do inferno, arrebatou-me nos braços, alisou-me os cabelos, beijou-me a boca e, graças a ela, acordei em segurança.

2 comentários:

Moacy Cirne disse...

Alucinação ou não:
você, de manhã,
no Balaio.

Um abraço.

Canto de Página disse...

Com todo prazer.

Abraço,

Cid