quinta-feira, 26 de junho de 2025

O caminho do crime

A linguagem do direito é cheia de expressões em latim, que, francamente, evito usar. São cafonas, a não ser quando necessárias, a exemplo de habeas corpus. Neste caso, seria pior traduzir para o português e dizer “tome o corpo”. Mas o termo da moda, desde a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Jair Bolsonaro e pouco mais de duas dezenas de militares é iter criminis.

Em nosso idioma inculto e belo, na expressão bilaquiana, iter criminis significa “caminho do crime” e designa as etapas percorridas na prática do delito. São elas, cogitação, preparação, execução e, às vezes, exaurimento.

No contexto penal, cogitar significa pensar em cometer o delito. Ninguém pode ser punido por isso, a não ser, talvez, em ditaduras. Raul Seixas bem o revela na letra de Metrô Linha 743, gravada em 1984, ao descrever a cena do homem abordado por três outros, armados, só porque estava escorado em um poste, fumando. Logo no início da abordagem, um dos agentes do Estado declara: “Eu quero é saber o que você estava pensando/ Eu avalio o preço me baseando no nível mental / Que você anda por aí usando”.

A preparação também não recebe penalidade alguma, a não ser quando o ato preparatório é em si um crime definido em lei, a exemplo da associação criminosa (art. 288 do CP), antigamente chamada formação de quadrilha ou bando; e da organização criminosa (Lei n. 12.850/2013). Em ambos os casos, basta a reunião de agentes com o intuito de fazer algo, sem necessariamente chegar às vias de fato.

Já a execução é sempre punível, a não ser que acobertada por alguma excludente, como a famosa legítima defesa. Ao iniciar os atos executórios, o autor pode responder nas formas consumada, quando consegue realizar completamente o intento; ou tentada, se o crime não se consuma por motivo alheio à vontade dele. Em termos práticos, se, iniciada a prática do homicídio, a vítima é morta, tem-se a consumação, mas se o homicida é impedido, ocorre a tentativa.

Existem hipóteses, todavia, nas quais a tentativa é em si a consumação. São os casos de atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública (art. 265 do CP), afastamento de licitante (art. 337-K do CP), evasão mediante violência contra pessoa (art. 352 do CP), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP) e golpe de Estado (art. 359-M do CP).

O exaurimento, para constar, corresponde a efeitos produzidos após a consumação, que podem ou não ser punidos ou influenciar na quantidade de pena. Por exemplo, matar alguém com um tiro na cabeça e descarregar o resto na munição da arma no cadáver. Se o primeiro disparo causou a morte, os demais são mero exaurimento da conduta delituosa.


Marcello Casal - Agência Brasil

A propósito, o exaurimento foi um dos pontos do julgamento de Elize Natsunaga, no tocante a qualificadora de meio cruel, que poderá ser tema de outra coisa assim, tanto artigo, quase crônica. A questão era: se Elize começou a esquartejar o marido Marcos Kitano Matsunaga quando ele ainda estava vivo, sua pena ganharia um plus. Se o corpo sem vida de Marcos foi esquartejado, poder-se-ia interpretar como exaurimento no tocante ao assassinato e início da execução de outro delito, a ocultação de cadáver (art. 211 do CP).

Voltando ao assunto de hoje, como se viu, abolição do estado Democrático de Direito e golpe de Estado, dois dos crimes imputados ao agrupamento bolsonarista, consumam-se na tentativa, porque assim o CP estabelece. Então, se corretas as afirmações da PGR, de que esse grupo pôs em prática, de 7 de setembro de 2021 a 8 de janeiro de 2023, um plano macabro para reimplantar uma ditadura no Brasil, todos podem ser condenados.

Os outros crimes atribuídos são organização criminosa armada, que se consuma nos atos preparatórios, e dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, que exigem, estes sim, o ingresso nos atos executórios.

Atenção! Não estou dizendo que os réus são culpados. A palavra quanto a isso cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF), após o devido processo, com oportunidade para a ampla defesa e o contraditório por parte dos denunciados, garantias que, diga-se de passagem, só existem nas democracias.

Neste momento, afirmo apenas que a denúncia da PGR atribui condutas graves aos denunciados que correspondem a crimes consumados, inclusive os dos artigos 359-L e 359-M do Código Penal. Se há provas para condenação, e parece haver em quantidade, aí são outros quinhentos. Aguardemos o desfecho.