sábado, 25 de julho de 2009
Coice, qualquer jumento dá!
Costumo alertar, a quem perde tempo me dando ouvidos, para não confundir crítica e coice. Resgato a preocupação da oralidade, registrando-a neste inexpressivo Canto de Página, sem o menor desejo de bater de frente com jornalistas, blogueiros e outras personagens da mídia adeptas do chamado "estilo arrasa-quarteirão". Não seria eu, um ignorante de carteirinha, o conselheiro de seu ninguém. As palavras, no entanto, não hei de negá-las por medo de polêmica, se precisam ser ditas.
A mídia é ambiente propício ao debate, ao conflito de juízos, à liberdade de expressão, aos embates da inteligência. Na era da Internet, o aparato tecnológico amplia o alcance das ideias. O pretenso formador de opinião, esteja no grande centro ou na pequena cidade, terá ao dispor instrumentos capazes de levar seus pontos de vista a quase todas as partes do planeta. O salto das tecnologias da comunicação parece haver transformado o tempo e o espaço em circunstâncias puramente virtuais.
Tais possibilidades encantam muito mais do que a letra estática na superfície do papel ou lançada, como se falava antes, no éter das ondas de rádio e de TV. Esse alumbramento é, de certo modo, perigoso. Ele rouba, não raro, o discernimento, a capacidade das pessoas perceberem, por exemplo, que o poder da informação é nada diante da responsabilidade da informação. Leva-as, também, a confundir o sacrossanto direito à liberdade de expressão com o deplorável exercício do insulto.
Li há poucas semanas que determinada figura criará um "blog jornalístico" destinado a bater, a esfolar, a trucidar, a não deixar pedra sobre pedra. Isso, francamente, é triste e não tem nada a ver com jornalismo. Aproveitar espaços democráticos para atacar a honra alheia com palavras de baixo calão, empreendendo perseguições medonhas, porque recebe dinheiro para o dito fim ou simplesmente porque não vai com a cara de um sujeito, fere a lei, o bom-senso e a inteligência dos leitores.
Criou-se em Mossoró a equivocada escola, segundo a qual bom comunicador é aquele que diz desaforos e acerta o alvo com as quatro patas. Ao longo dos anos, as vítimas se acumulam. Muitos espectadores, impulsionados por sentimentos doentios, aplaudem e estimulam o espetáculo de horrores, mas só até o dia em que também apanham ou veem pessoas queridas debaixo de vara, sem direito a se defender. Afinal, quem esperneia é logo rotulado de antidemocrático e atrai novos escrachos.
Crítica é texto nobre elaborado por gente capaz de enxergar a mágica dos detalhes e traduzir a realidade com humor, leveza e fina ironia, levando-nos a refletir sobre aspectos das coisas. Grosserias e expressões humilhantes, longe de se confundirem com jornalismo ou com reflexão, não passam de gestos grotescos premiáveis com uma bela cangalha. Fico com Goethe ao afirmar que o mais duro dos críticos é "o amador malogrado", pois crítica é arte; coice, qualquer jumento dá!
sábado, 18 de julho de 2009
Penetrando nas bichas
Cobrança de estacionamento em shopping center é sempre motivo de polêmica, pelo menos no início. Acontece no Brasil inteiro e não seria diferente em Mossoró, onde os gestores do condomínio de lojas, para piorar, resolveram exigir dinheiro também aos funcionários. Além disso, a prefeitura recusa-se a explicar a doação do terreno e a suposta isenção de impostos para atrair os empreendedores.
Questão semelhante, exceto pelas suspeitas levantadas aqui, rendeu incontáveis páginas na imprensa natalense - sites e blogs sequer existiam. O problema gerou ainda discursos inflamados na Câmara de Vereadores e, se me é fiel a velha memória, ação judicial para proibir a tarifa. Adiantou nada, pois a exploração comercial de estacionamentos é negócio como outro qualquer, cria emprego e gera impostos.
A Assembleia Legislativa do Paraná chegou a aprovar projeto liberando do pagamento, consumidores que comprassem acima de determinado valor. Terá sido sancionada? Estará em vigor? A Câmara dos Deputados, por sua vez, avalia proposta que “dispõe sobre a gratuidade em estacionamentos de shopping centers, hipermercados e congêneres”. Trata-se de nova tentativa sem maiores possibilidades.
Por enquanto, resta aos inconformados a retirada ou o lado de fora, nos lugares onde isso é permitido. Aqui, o exército amarelo do governo azul não quer que as pessoas deixem os carros delas na lateral do Mossoró West Shopping. Afirma que o Código Brasileiro de Trânsito proíbe estacionar em acostamentos. Infração de gravidade mediana, punida com multa e com aquele reboque de 70 contos.
Leigo, leigo, leigo, como diria o filósofo barroco Luciano Lellys, não me atreveria a questionar o comportamento da autoridade, mas imagino que a proibição somente se justificaria pela colocação arbitrária de sinais específicos de trânsito. Tal medida, aliás, seria exagero num trecho praticamente morto da rua que carrega o nome do grande jornalista, xilógrafo e artista João da Escóssia Nogueira.
E mais: se proibirem ali, onde há espaço de sobra, terão de estender a providência ao restante da via, entre as terras da extinta fazenda São João e a rua Juvenal Lamartine, depois do cemitério São Sebastião. Tudo é João da Escóssia, embora da BR-304 ao Centro lhe falte acostamento. Ótima iniciativa para alimentar a indústria da multa prestes a nascer a título de incremento do nosso tesouro.
Você deve estar pensando que sou desfavorável à taxa de estacionamento do Mossoró West Shopping. Critico, sem meias palavras, a extorsão contra os funcionários das lojas ali abrigadas e confio nas providências do Ministério Público do Trabalho. De minha parte, pago os R$ 2,00 sem drama, contente da vida por não ser necessário disputar vaga nem ouvir desaforos dos flanelinhas da praça da catedral.
O único problema são as filas para entrar e sair. Odeio filas. Tive a infelicidade de ex-ternar esse sentimento ao vigia da cancela, após 30 minutos de castigo, com a mulher e três crianças dentro do carro, uma delas com apenas 10 meses. “Então é melhor o senhor não voltar, porque vai ser sempre assim”, disse-me o rapazola e, ao que parece, muita gente o ouviu e, pior, seguiu o bom conselho.
Fila é coisa do satanás, do demo, do tinhoso, do coisa ruim. Na perspectiva delas, prefiro muitas vezes ficar em casa, babando pelas gostosas da novela das oito. Há quem se acostume com chifre, asma e reumatismo. Há quem se habitue a chulé, mau hálito e so-vaqueira. Há quem se acostume a receber tratamento igual ao que me deram. Fila? Ninguém merece! Antes a boa morte! Vade retro! Eca!
Lembrei-me agora, nas últimas das últimas, que fila em Portugal significa bicha, e vice-versa. Persistissem os ares coloniais na Terra de Santa Luzia, deveríamos, civilizadamente, esquecer as filas e penetrar nos rabos daquelas bichas enormes de acesso ao afamado estacionamento. E pagando por isso com satisfação orgasmática. Ora, pois, em tempo de padronização linguística, tudo é possível.
sábado, 4 de julho de 2009
Medinho da concorrência
Recomecei esta crônica cinco vezes, cada qual abordando assunto diferente. Estou na quinta, esperançoso de que as ideias finalmente se encaixem, mas ideia sem acento é grave, complica a vida do sujeito. Fazer o quê, se tantas coisas passam e não ficam na cachola igual juízo. Certa vez, um professor desejou-me “vergonha e juízo”. Recusei: “Vergonha eu tenho de sobra e juízo é coisa de doido”.
Ixe, Maria! Luciene acabou de aparecer na televisão vestindo um “triquíni”. O close no liame entre o tronco e as pernas, segundo a apresentadora, demonstra “ângulos e proporções definidas por Leonardo da Vinte”, ops, da Vinci. Soube, por Rogério Dias, que o mestre renascentista criou máquinas de guerra. Nunca pensei fossem desses. Quero ser atacado e destruído. Porra, chegou Letícia... Amanda!
Bom, eu falava sobre? Sim, a cadelinha atendida num hospital público de Santa Catarina por médico e dez enfermeiras. Pobrezinha, morreu de insuficiência respiratória após dez minutos numa máscara de oxigênio. Sacanagem, bicho tratado como gente. Os envolvidos devem ser processados por maus tratos aos animais. E condenados ao inferno da pedra, sem direito a recurso ou progressão de pena.
O assunto, de vera, é Gimenez. Digo, Palacios. Não, Noronha. Droga, eu ia dizer Poeta. Ou seria... deixe-me pegar a velha lira e cantar, pervertendo Florbela Espanca, para declarar que a crônica é esta e aquela, a outra de toda gente. Pessoa qualquer diria não ter “outra razão para amar senão amar”. E indagaria, louco: “Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?”.
Gostaria, contudo, de comentar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o finado diploma de jornalista. Que confusão! Que babaquice! Os doutos ministros, com exceção de Mun-Rá, o ser Marco Aurélio Eterno, juram de pés juntos, mãos postas e olhos rútilos que formação superior não vale um cibasol vencido, embora o exijam nos concursos da Suprema Corte. Coerência a toda prova.
Michael Jakson morreu, porque não Elvis. Dizem maldosamente na redação do velho O Mossoroense, a culpa é do script que a Pachorra da Resistência ditou para pânico da nação smurf. O rei do pop, na versão caseira, enfartou ao saber dos empresários que, além dos 50 shows ingleses, deveria interpretar o cangaceiro Jararaca no Chuva de Babaquices no País de Mossoró. Medinho da concorrência.
sábado, 13 de junho de 2009
Noite dos namorados
O restaurante superlotado. Chuva, muita chuva lá fora. Pessoas molhadas esbarravam-se em busca de lugares secos e menos inconvenientes ao fluxo dos garçons que vararam a multidão com bandejas prateadas. Os dois estavam lá, sentados em cadeiras de plástico azuis postadas defronte aos banheiros, conversando sobre viver intensamente, como se aquela fosse a última noite dos namorados.
Pediram vinho da Toscana, brindaram e beberam em seguida, para afastar a maldição dos sete anos. Beijaram-se logo depois. Ela sorria apertando os olhos e cobrindo a boca com os dedos entreabertos da mão esquerda. Ele arreganhava os dentes sem o menor pudor. Curiosos os cercavam com olhos grandes e gordurosos, não se sabe se por inveja doentia ou mero alumbramento romântico.
O tempo passou. A chuva passou. A multidão se foi. Vagou mesa. Escolheram o jantar. Peixe ao molho de abacaxi. E peixe ao molho quatro queijos. Acenderam duas velas em forma de coração. Brindaram outra vez. Trocaram presentes. Poema dele para ela. Poema de Fernando Pessoa levado por ela para ele. Este impresso num travesseiro vermelho. Aquele gravado numa camisa branca.
O fogo brando do vulcão antigo, completamente, alucinadamente, perdidamente rendido aos apelos das uvas fermentadas, sentia pressa em se fazer carne suor dedos línguas orgasmos gritos. O mundo poderia se acabar na ponta do punhal de Jararaca antes de o dia cobrir de luz o rosto escuro da madrugada de Mossoró, mas o amor, diria Drummond, “É primo da morte, e da morte vencedor”.
Passava da meia-noite quando as taças se aquietaram. As velas, em dois sopros, pararam de iluminar as refeições quase intocadas, os talheres, os rostos. Os olhos permaneciam vivos. Pagaram a conta e até gratificaram o garçom com os últimos trocados arrancados de seus bolsos. Aí, saíram de mãos dadas, desafiando em grego a imaginação fértil da plateia, nas estrofes de um choro bandido.
sábado, 6 de junho de 2009
Esporte predileto
Parece mentira. Após séculos de sedentarismo, voltei a andar de bicicleta. Toda noite monto a magrela e saio por aí, zanzando pelas ruas de Mossoró. Aos domingos, o horário é o da manhã, sempre acompanhado de Samara, afinal foi ela quem me colocou nessa, lembrando-me, após uma quase explosão de colesterol e triglicéride, que, na infância, aquele era o meu esporte predileto.
Verdade. Do final dos anos 1970 para o início da década de 1980, o Nova Betânia, longe de ser o bairro chique e valorizado, era apenas o bucólico Rabo da Gata. Naqueles tempos, os meninos das imediações improvisavam pistas de bicicross nas ruas de barro vermelho e em terrenos baldios. Sofri tantas quedas transpondo obstáculos que as marcas se perpetuam em meu pobre corpo.
Falando em quedas, parêntese: saí de casa pilotando uma BMX, daquelas com tanquinho amarelo encobrindo o varão, rumo à residência da moça bonita que me prometera um beijo, o meu primeiro de língua. Cheguei às 20 horas em ponto, conforme acertado na tarde do mesmo dia, e saí cerca de 30 minutos depois, todo vaidoso, sentindo-me homem no fervor da pré-adolescência.
Tanta felicidade por haver deixado a infame condição de “BV”, sigla contemporânea que significa “boca virgem”, deu-me, no entanto, uma espécie de amnésia: esqueci-me de que a roda frontal estava apenas encaixada no garfo, sem parafusos, e empinei a bicicleta. Vi quando o aro se soltou e não vi mais nada, a vergonha pela queda na frente da menina me deixou completamente cego.
Vinte e tantos anos depois, arrastado ao comércio pela patroa, comprei as peças e mandei montar outra tralha, mas sem grandes expectativas. Nos primeiros exercícios, mal-alcancei a marca dos mil metros e os bofes já estavam saltando-me pela garganta, sem mencionar os testículos dormentes e a dorzinha ridícula, filha-da-mãe, na ossatura do mucumbu. Constrangedor, vergonhoso.
Superada a morrinha inicial, pega-se embalagem e não se quer parar. A marca agora é de no mínimo 10 quilômetros em dias úteis e cerca de 20 aos domingos. Pouco diante dos trajetos de ciclistas experientes, a exemplo do poeta Antônio Francisco, que, diga-se de passagem, acaba de lançar seus 7 Contos de Maria, com viagens até Natal. Bastante, contudo, para quem ensaia o recomeço.
sábado, 23 de maio de 2009
Que tal do começo?
Nem sei por onde começar. Permaneço em terras lunares desde a semana passada, com o casal 20, Jonathan e Jenifer Buraco. Ah, o povo mossoroense e sua verve libertária, com seu humor bocageano: o doutor Leo e a enfermeira Silva Buracão soltos na bura-queira, defendendo nossos direitos buraquísticos, ostentando o magnífico slogan “O bu-raco é meu e ninguém tasca”. Ixe!
Além disso, hoje – ontem para efeitos de jornal – é o aniversário de minha mãe. Ela dis-se, e se ela disse não há motivos para se negar, que alcançou as 58 primaveras, “cinco ponto oito”, como diria meu falecido avô, pai da jovem. Tomara, dona Sandra viva pelo menos outro tanto desse, porque “mãe, na sua graça”, puxando aqui por empréstimo a luz drummondiana, “é eternidade”.
Desejo escrever um poema, mas a lira não me ama, não me quer, não me chama de meu amor nem conhece o bom e velho Maria. Será? E eu estou a ver navios, as naus dos so-nhos de Manoel Furtado, vintenas delas, perdido com Ascenso Ferreira nos mares de Oropa, França e Bahia. Ai, a lira! Um sopro de cor nos meus olhos repletos de madru-gada e tudo viria em rimas e versos.
“Às vezes, me sinto muito só. Sem ontem e sem amanhã. Não adianta que haja pessoas em volta de mim. Mesmo as mais queridas. Só se está só ou acompanhado, dentro de si mesmo. Estou muito só hoje. Duas ou três lembranças que me fizeram companhia, des-de segunda-feira, eu já gastei. Não creio que, amanhã, aconteça alguma coisa de me-lhor”. Eis aí Maria, Antônio Maria.
Não, solidão, hoje os bares amanheceram sorrindo e eu acabo de comprar um livro novo de segunda, no qual está escrito que não terei feriado, fim de semana ou outro tipo de folga. É uma das maldições do jornalista, segundo Marcelo Rubens Paiva, que diz isso sem ao menos conhecer Luciano Lellys, repórter fotográfico, capataz de fazenda, agente funerário e assessor de todo mundo.
Sim, comprei também o livro organizado por Marcos Araújo sobre doutor “Cícero, o semeador de fé e justiça”... e pai do Menino Júlio. Sou fã dos dois. Faltam os autógra-fos, de Marcos e do homenageado, para abrilhantar ainda mais a obra. Talvez no próxi-mo veraneio, em Tibau, entre taça e outra de vinho canônico. Agora, pretendo dormir ouvindo as paredes, e talvez sonhar.
sábado, 16 de maio de 2009
NO BURACO - UMA OBRA DE FICÇÃO NADA CIENTÍFICA
Ministério Público – Vamos instaurar procedimento para investigar se os buracos foram licitados de acordo com a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Antônio Francisco – A Petrobras sinalizou apoio ao meu livro “O buraco em que a fome mora”.
Anchieta Costa Lima, interpretado por Zé Luiz – Veja, meu caro, estamos aqui, tête-à-tête, face a face, debruçados sobre a letra fria da norma estampada na tez pálida da celulose, o papel, para terçar lanças sobre a ilicitude das cavidades rotundas cunhadas na pavimentação asfáltica de nossa metrópole.
O Homem do Cachimbo – Eu defendo a legalização do buraco.
Marcos Ferreira – Falta agora cada buraco receber o nome de um Rosendo.
Túlio Ratto – Nem usando aquela canoa atômica, impulsionada pelo remo da pachorra, a papanguzada atravessa o rio de crateras.
Leonardo Nogueira – Eu sou terrível, e é bom parar / De desse jeito, me provocar.
Jório Nogueira – É incompetência do Capitão Gomes. Cadê que ele manda guinchar os buracos estacionados em lugar proibido?
Capitão Gomes – O nobre vereador deveria saber que o trânsito está municipalizado e, sendo assim, o Estado não pode guinchar buraco na circunscrição da prefeitura.
Na Usina de Asfalto – Comprei um quilo de asfalto / pra fazer farofa / pra fazer farofafá!
Caio Muniz – A poesia está em toda parte, inclusive no seu buraco.
Capitão Caverna – Simples: a palavra Mos-so-ró traz um buraco em cada sílaba.
Carlos Santos – E assim caminha a humanidade mossoroense, em meio à buraqueira.
Karol Poltergeist – Aleluia, It’s raining man... e nossos buracos ficarão abertos até o fim deste ma-ra-vi-lho-so inverno!
Luís Alves – Velho, a porra do buraco já está enchendo a porra do meu saco!
Claudionor dos Santos – A Câmara, independente sob minha presidência, pode tombar a buraqueira e até tombar na buraqueira, basta o Executivo oficializar o pedido.
Kydelmir Dantas – Se a buraqueira existisse em 1927, Mossoró teria economizado na construção de trincheiras para se defender do bando de Lampião.
Felipe Caetano – E nós poderíamos criar uma homenagem aos combatentes que lutaram em buraco desconhecido.
João Marcelino – Minha parte é montar o “Chuva de Buracos no País de Mossoró”.
Rosalba Ciarlini – Meus irmãos buraquenses!
Erasmo Firmino – Tio Colorau me disse assim: “Você é doido, mexer no buraco dos políticos”.
Gerente de Turismo – Ampliando alguns buracos, chegaremos à China na classe econômica, mas com rapidez.
Laércio Eugênio – Apesar da AIDS, da CNBB e dos buracos, os jovens continuam a transar e gozar sem camisinha.
Nilo Santos – Depois do jornalismo desejoso, nasce em Mossoró o buraco desejoso.
Propaganda da PMM – Tá na cara/ Tá Diferente/ Mossoró, o buraco da gente.
Caby da Costa Lima – Perdi três pares de tamanco, garotinho.
Sandra Rosado – Agora, sim, vocês estão conhecendo o verdadeiro estilo “arrasa-quarteirão”.
Betinho Rosado – E a Justiça ainda quer que eu fique no buraco Democrata.
Dança do buraco – Cada um/ No seu buraco.../ Cada um no seu buraco.
Larissa Rosado – Somente o TSE para cassar os tais buracos.
Francisco Carlos – Não existem buracos. É tudo mentira da oposição.
Guerrinha – Buraco? Neeeero!
Ravengar – Desafio qualquer pessoa a encontrar minha assinatura num buraco sequer.
Otavinho – Fafá, eu gosto de você, Fafá. Você é minha amiga, Fafá, mas eu preciso dizer, Fafá, que meu bairro está magoado porque sua administração, Fafá, rebaixou a Lagoa do Mato para Buraco do Mato.
Prefeita Fafá Rosado – Meu filho, isso não é só em Mossoró não. Mas tem nada não, eu sei que meu filho recebeu dinheiro pra vir dizer isso. Eu conheço de longe.
Acórdão do TRE – A inauguração de buracos não demonstra potencialidade para influir no pleito municipal.
João Buracão – E agora, quem poderá me defender?
Freud – Por favor, não me peça explicações. Eu não sou o Chapolin Colorado.
sábado, 9 de maio de 2009
Amigos de infância
Meu filho, o segundo deles, perguntou-me sobre amigos de infância, com quantos man-tenho ligação. Pensei, repensei, refleti mais ainda e me vi acuado. Não diante da pergun-ta à queima-roupa, sem precedência no diálogo daquela manhã clara de domingo, en-quanto púnhamos os arreios em Manhoso e Bebel para um passeio na Mororó, mas sim pela conclusão desanimadora que me atropelou.
Disse-lhe, um tanto envergonhado, que praticamente não tenho contato com os amigos da infância. Alguns morreram, infelizmente, e os que continuam usufruindo deste imen-so privilégio de viver seguem por caminhos diversificados. Até onde ouço falar, vários se tornaram gente de bem e poucos tropeçaram nas pedras do vício, despencando, por conseguinte, nas sendas da loucura ou do crime.
Sei dessas coisas por um ou por outro que reencontro pelas ruas, nos bares ou em rarís-simos comparecimentos a eventos sociais – tornei-me, como diria o saudoso mestre An-tônio Rosado Maia, “um misantropo”. Há pobres, remediados e ricos. De desempregado a juiz. De humilde a arrogante. Dos que festejam ao reverem velhos camaradas aos ca-pazes de virar a face para não encarar o passado.
Percorri tantos caminhos, fazendo jus à canção, sendo esta “metamorfose ambulante”, mudando de opinião sobre “o que eu nem sei quem sou”. Talvez os amigos das épocas de infância e de juventude permaneçam no lugar de 30 anos atrás, dividindo os mesmos territórios afetivos, e a distância seja culpa minha, pela ânsia régia de amar o longe, a miragem, os abismos, as torrentes e os desertos.
Perdoem-me, então, aqueles dos quais me afastei. Perdoem-me, especialmente, aqueles cujos rostos perdi nas vielas escuras da memória. Agora, enquanto escrevo estas maltraçadas e maltratadas linhas, muitos retornam e, de certo modo, o exercício me comove e me alegra, pois da multidão de personagens do passado, existem apenas dois ou três desencontros reais e, quiçá, insuperáveis.
Tais desacertos, além de tudo, são de outras fases, nada com referência à meninice. O importante, e isto posso dizer olhando nos olhos do meu filho, é que o pai dele construiu uma legião de amigos, agindo com respeito e lealdade. Não importa se nos vemos dia a dia, ano a ano, década a década. O importante é sabermos que, para lá do espaço e do tempo, sobrevive a força encantadora do afeto.
domingo, 26 de abril de 2009
Imbecil!
Todo mundo parou, olhando-me com ar de repúdio. A mulher tinha razão, mas ao mesmo tempo não tinha, de dar aquele grito medonho e injuriante: “Imbecil!”. Sem querer fugir à responsabilidade pelo lamentável ocorrido, asseguro que era impossível evitar que uma das rodas do carro caísse num entre os trilhares de buracos da tábua de pirulitos em que se transformou a Mossoró da Gente.
O trânsito frenético das 7 horas, a chuva forte, os vidros embaçados do veículo, as crateras nas ruas. O universo conspirava contra mim e contra a moça de bicicleta. De qualquer modo, os pingos de lama causaram-lhe mais irritação – pelo susto! – do que estrago nas roupas. Também estou ciclista, forçado pelo excesso de banhas e de lipídios, e quase sempre passo por situações semelhantes.
Na atual conjuntura, o melhor motorista não consegue se livrar da buraqueira, pois se o sujeito desvia de uma boca-de-panela cai em outra. Ou em outras. E convenhamos, desviar, dependendo do momento, a exemplo daquele em que acabei ouvindo o desaforo, pode piorar as coisas em consequência do risco de acidente, algo corriqueiro nas áreas críticas, como demonstram os noticiários.
A culpa é do inverno, dizem os representantes do Palácio da Resistência, tentando justificar o porquê de o asfalto da cidade se derreter com qualquer neblina, feito Sonrisal. Se pelo menos a pavimentação de nossa amada e idolatrada Terra de Santa Luzia tivesse propriedades medicinais, poder-se-ia dirimir o mal-estar dos cidadãos com dois ou três copos de betume diluído na água da chuvarada.
Tá na cara, só não vê quem não quer, quem é pago para não ver e quem anda com a vista prejudicada pela paixonite partidária: a culpa é do poder público, por não fiscalizar adequadamente as suas obras, permitindo que as gatinhas e gatonas reduzam a qualidade dos materiais e serviços para aumentar os lucros e a força de convencimento político. A natureza é inocente e eu não sou tão imbecil.
sábado, 17 de janeiro de 2009
Nem que a vaca dance
Hoje não escrevo nem que a vaca dance o maxixe e o cavalo relinche o Hino Nacional. Amanheci barbudo, cheio de olheiras, sem a menor inspiração e com aquela preguiça medonha capaz de aprisionar o juízo do sujeito no travesseiro, mesmo o corpo marcando presença em algum lugar, a exemplo de agora, eu aqui, na redação do O Mossoroense, ouvindo as aventuras de Luciano Maia e de Bruno Barreto.
Herói dos sertões do Piauí, Maia trocou o mormaço de Teresina pelo clima europeu do País de Mossoró, deixando na saudade as moças da Elias Martins. O cabra é bom repórter policial e estuda para ser advogado. Deu-se tão bem no jornal, que parece trabalhar nele há 136 anos, desde a época de Jeremias da Rocha, com quem, segundo dizem, costumava degustar iguarias denominadas quartos secos de bode.
O velho Bruno Barreto chegou menino, logo após ser aprovado no vestibular para o curso de Comunicação Social da Uern. Inscreveu-se entre os melhores editores de política do Estado por esforço próprio, sem favor de ninguém. Na última campanha, sofreu ataques injustos de um grupo que tentou, sem sucesso, abalar sua credibilidade. Aguentou firme a saraivada de mentiras e se saiu fortalecido da história.
Estamos de plantão, os três “musquiteiros”, num sábado patético e sem emoções, a não serem “as perspectivas do domingo”, consagradas nos versos de Vinicius, e as lembranças do último capítulo de “A favorita”, que paralisou a nossa redação ontem à noite, com direito a declarações de amor tanto a Flora quanto a Donatela. Patrícia Pillar – com todo respeito a Ciro – é linda até no papel de rainha das vilãs.
Bruno com saudade da namorada, futura zootecnista, e se queixando do irmão que o acordou de madrugada, pedindo carona para o trabalho. Maia, faminto às 10 horas, só fala em comer tatu na casa de Zé Blebleu, o chefe de segurança da Rede Resistência. E eu, cansado, desejando a rede armada no alpendre da Rua dos Bobos, nº 0, onde, quem sabe, sonharei conferindo o bilhete premiado da Mega Sena.
sábado, 10 de janeiro de 2009
Atleta tampax
Destemido, subi ao tabuleiro da balança. Os olhos vermelhos da máquina reviraram-se nas próprias órbitas por instantes até repousarem, sarcásticos, o primeiro sobre o oito e o segundo sobre o zero. Minha nossa, 80 quilos cravados, 10 acima do ideal para minha estatura mediana, sobrepeso incômodo para quem, desde jovem, sofre de hipertensão arterial e suporta severas crises de artrite.
Na semana seguinte, depois de esmiuçar a bateria de exames, de conferir o meu peso e de esticar a fita métrica para medir-me a circunferência abdominal, a médica prescreveu, sem dó nem piedade, duas coisas aterrorizantes: dieta e exercícios. Pela dieta, nem tanto, mas atividade física, para um sedentário convicto e militante, é algo pior que a peleja de mestre Alfredo com a besta-fera.
Engraçado. Eu gostava de praticar esportes. Treinei basquete no Santa Luzia, embora fosse o baixinho da turma e passasse a maior parte do tempo no banco de reservas do time de Gilson. Depois, lá mesmo no Colégio dos Padres, integrei a equipe de atletismo coordenada por Tananam, conquistando o honroso quinto lugar em arremesso de peso numa prova disputada por cinco atletas.
Realizei a façanha de me tornar medalhista no handebol sem ao menos pisar na quadra. Ou melhor, sem sequer assistir ao jogo. Digo, sem saber nem onde diabos se realizou a tal partida. Emprestei meu nome, atendendo ao apelo de alguém, para complementação da equipe: o famoso atleta tampax. Dei sorte, fazendo jus à medalha que me foi entregue dias depois, pelo técnico da equipe.
Experimentei o caratê. Cada vez que os caras gritavam “Kiaaaiiii”, eu ria tanto que acanalhava o treino. Joguei capoeira e quase acabei preso junto aos colegas do grupo Abadá. O delegado não admitia “vagabundagem” em praça pública. No judô, venci uma luta após cinco anos, quando o oponente errou o golpe e me derrubou sentado na barriga dele, que desmaiou. Imagine o desespero!
sábado, 3 de janeiro de 2009
À de azul
sábado, 27 de dezembro de 2008
Folhas de outono
O livro de Francisco Rodrigues é uma maravilha, desde a capa de Túlio Ratto ao posfácio de José Leite. Aliás, Seu Chico é, em si, uma beleza, inteligente sem arrogância, “lido” sem afetações literatescas, cordial sem fingimento e humilde o bastante para compartilhar memórias, libertando-as ao sabor dos ventos, de carona em Folhas de Outono.
O parecer carece de fundamentação crítica, sustenta-se apenas na passionalidade afetiva de quem se limita a falar “gostei” ou “não gostei”, por desconhecer as variáveis dos entendidos para indicar os elementos que diferenciam obra e obra. Pois muito bem, gosto do autor, mesmo sem maior convivência que justifique o bem-querer, e gosto do livro.
Quem lê as recordações de Seu Chico tem a sensação de ouvir histórias daquele parente mais velho cujas experiências nos servem de parâmetro. Até as tiradas ficcionais desse retratista das letras ajudam a compreender o passado de nossa terra, o passado de nossa gente e, assim, a contextualizar os retalhos de nosso próprio varal de lembranças.
A leitura me remete às conversas com meu avô paterno, o velho Lahyre, falecido aos 92 anos, véspera dos 93, lúcido até o último dos suspiros. Sua cabeça era algo invejável, capaz de manter intactos as cores, os sons e os cheiros dos acontecimentos. Para se ter idéia, trazia de cor as fórmulas dos remédios que produzia na extinta Farmácia Rosado.
Em Folhas de Outono, não necessariamente com pontos de vista iguais, há ecos dos relatos de doutor Lahyre. Porto Franco, estrada de ferro, ruas antigas, embates políticos. Algumas figuras se cruzam, a exemplo de Terto Diabo, sogro do monsenhor Barreto, religioso vítima de uma das maiores injustiças praticadas na libertária terra dos monxorós.
Diga-se, ao fim e ao cabo, de meu respeito pelos memorialistas, e, à vista de sua bela coleção de momentos, Seu Chico é digno da nomeada. Eu, que perco os óculos no rosto, que sofro para ligar nomes a pessoas e que não raro me esqueço do autor quando acabo de ler seu livro, deixo, por escrito e impresso, este humilde gesto de reconhecimento.
domingo, 7 de dezembro de 2008
Beleza é fundamental
O poeta Vinicius de Moraes comprou uma briga de foice com segmentos feministas ao pedir perdão às "muito feias", em Receita de Mulher, para declarar que "beleza é fundamental". Poucos compreenderam a subjetividade do texto, pois o belo, inclusive no reino das criaturas estereotipadas, alimenta-se das fantasias e das expectativas de cada sujeito.
Disseram-me que tenho a triste fama de namorar mulheres feiosas. E isso aconteceu na madrugada de sexta-feira, na festa de Santa Luzia, padroeira das claridades visuais. Fiquei surpreso, embora sem queixas, afinal o comentário veio de uma bela mulher e me foi repassado por outra não menos atraente, de acordo com meu "duvidoso" sentido estético.
Ao amanhecer, tentei decifrar a enigmática face da feiúra. Comecei pelo rosto que me apareceu no espelho do banheiro, com dois pares de rugas aspando olheiras gigantes e estas, por suas tristes vezes, servindo de molduras a olhos vermelhos, parecidos com aqueles descritos por Machado, o Bruxo do Cosme Velho, "de ressaca, oblíquos e dissimulados".
Parti para o espelho do quarto, que é dos grandes, e enxerguei o indigitado sujeito na superfície envidraçada do objeto narcisista, agora de corpo inteiro, nu, ostentando aquele físico de anjo barroco: baixinho, gordinho e sexualmente resumido, além de ser cabeção e branquela feito ratazana de laboratório. Ixe, ainda bem que há gosto e setembro para tudo.
Existem, nas conjecturas de Baudelaire, "tantos tipos de beleza quanto modos habituais de se procurar a felicidade". Nesse contexto, toda mulher, inclusive as consideradas "muito feias", tem algo de fascinante a oferecer, especialmente aos homens que se esbaldam na riqueza do detalhe. "Quem ama o feio", diz um sábio e antigo ditado, "bonito lhe parece".
Não nos esqueçamos dos padrões culturais. O belo na ótica brasileira é diferente do conceito americano, do alemão, do africano, do chinês e por aí vai. Claro, há gente como eu que é horrorosa em qualquer parte do globo, mas, no passo dos desafinados, nós, os desabonitados, também temos coração e queremos ser felizes, crescer, amar e multiplicar.
No mais, cabe-me dizer, sem o interesse de com isso me gabar, que vivo com uma mulher linda, cheirosa, gostosa e, como se não bastasse, de rara inteligência. Foi ela quem me enquadrou na sub-raça dos boêmios de asa quebrada, com a magia de seus beijos, o calor de sua carne e a maravilha do amor que conservou por 20 anos para me entregar.
sábado, 29 de novembro de 2008
A musa do meu amigo
Linda, tesuda e, aparentemente, sensível aos apelos da carne. Passa derramando o mar de seus olhos verdes sobre nós, reles criaturas mortais, a ponto de quase nos afogar em terra firme. Todos a amamos, um de meus amigos em especial, na distância platônica que ele mesmo criou e não consegue vencer. Fidelidade! O rapaz é fiel à namorada.
Nunca nos dá o menor cabimento, apenas segue caminho, aprimorando o molejo sobre os saltos, e isso em gesto de pura maldade, para aumentar a fome canina dos olhos da rapaziada. Quando muito, a danada projeta a claridade do sorriso em resposta aos bons-dias. “Meu Deus”, o pessoal grita o verso de Vinícius, “eu quero a mulher que passa!”
Meu amigo, coitado, sofre horrores. Os que desejam a dita cuja, sem deixar de torcer pelo companheiro, sofrem por solidariedade. É deveras triste vê-la grudada ao tórax de sujeito qualquer, invadida por beijos sebosos, atada em abraços repressores, profanada à flor da pele por mãos cheias de dedos e sabe-se lá por que mais, longe dos seus vigias.
Aqui para nós, e no melhor sentido da expressão, a tal musa é uma grandessíssima e maravilhosa safada. Alta noite, bar da praça, violões em sol, enxerguei-a por entre sombras, trocando-se em miúdos com um sujeito atarracado e carrancudo. Nem bem amanheceu, encontrei-a noutro canto, dependurada num almofadinha de paletó e gravata.
O leitor pode imaginar, diante das palavras que acabam de cair no papel, que estou com inveja, como se as musas não pudessem sucumbir a calores humanos, a não ser os meus. Na verdade, estamos, eu e a platéia de babões, com a estranha sensação de cornice indireta, mas tudo isso com o maior respeito ao nosso amigo e à sua paixão platônica.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
O fantasma, o livro e as flores
domingo, 9 de novembro de 2008
Memorial
Aprendi com Drummond que o meu coração é muito menor que o mundo, pois “Nele não cabem nem as minhas dores”. Foi também o poeta de Itabira, ao receber de um anjo torto a missão de “ser gauch na vida”, quem me ensinou que por isso gostamos de nos contar, de nos despir, de nos gritar. “Por isso freqüento os jornais”, diz ele, “me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos”, mas sem me descuidar da trama, das leis do imaginário.
As lembranças expostas à claridade, sem um tiquinho de autonomia criativa, perdem a mobilidade. Já dizia Saramago, n’O Ano de 1993: “Quando o sol se move como acontece fora das pinturas a nitidez é menor e a luz sabe muito menos o seu lugar”. Melhor a inquietude da luz em movimento, ressaltando pontos diferentes de imagens diversas, conforme o estado de espírito do observador, do que a palidez estática da nobre absoluta verdade.
domingo, 2 de novembro de 2008
Um beijo
sábado, 25 de outubro de 2008
A enchente*
tricotomizado (dividido em três cursos d'água) por idéia de Wilson
Rosado, genial autodidata, e obra do prefeito Dix-huit Rosado,
transbordou, inundando vários pontos da cidade. O Centro, por exemplo,
parecia um projeto de Atlântida, a mitológica cidade subaquática.
Havia piabas até no entorno da praça do Pax, nosso querido e extinto
cinema de saudosos vesperais.
O jornal O Mossoroense, coitado, teve enorme prejuízo. Recebemos, eu e
Chico Guerra, a infrutífera missão de proteger a sede da empresa.
Recrutamos Seu João, competente mestre-de-obras, para lacrar as
entradas do edifício. Havia duas – a da recepção e a da lateral, que
dava acesso à escada dos andares superiores. Naquela época, a redação
funcionava no primeiro andar. O segundo, meio que abandonado, servia
de depósito.
Pois bem, Seu João fez o serviço. As paredes ficaram ótimas, mas de
nada adiantaram. A água estourou o piso e subiu mais de metro,
danificando vários equipamentos, a exemplo das impressoras Big Chief
29 e Marinonni, aquela americana, esta francesa, nunca italiana,
conforme equivocadamente escrevi certa vez. O pior foi constatar a
perda quase total dos arquivos. Cem anos de História tragados pela
sede insaciável da enchente.
Naquele instante, já me encontrava alistado da Defesa Civil, que ao
contrário de hoje funcionava de verdade, sem a necessidade de
intermináveis reuniões de "planejamento". Trabalhei voluntariamente
preparando cestas básicas, com víveres doados pela população, por
empresários e pela própria prefeitura, para serem distribuídas como
forma de amenizar as terríveis necessidades pelas quais passavam as
pessoas desabrigadas.
As áreas atingidas, por incrível que pareça, são as mesmas de hoje,
demonstrando a inércia do poder público no tocante a providências
definitivas. Justiça seja feita, Dix-huit fez a parte dele. A
tricotomização é uma das grandes obras realizadas no município. Não
existisse, pessoas estariam, igual a 1985, trafegando de canoa pelas
ruas alagadas e pescando em salas-de-estar, coisa que também
presenciei entre assombrado e curioso.
Houve uma campanha nacional para arrecadar donativos. Vários artistas
emprestaram sua voz para o poema de Patativa: "A sorte do nordestino /
é mesmo de fazer dó / Seca sem chuva é ruim / Mas seca d'água é pior".
Nunca me esqueci, estrofes vez por outra martelam meu juízo, se é que
nalgum tempo tive esse negócio. Ainda devo possuir o compacto, a
bolachinha, 33 r.p.m., guardado em algum dos lugares por onde andei.
A situação era grave, gravíssima, e olhe que inexistiam complicadores
modernos, tipo dengue e risco de transmissão de outras doenças por
causa do lixo urbano e da imundície que a chuva arrasta dos bueiros
infestados de ratos e baratas. O rio pelo menos era limpo naquela
época, embora prestes a se transformar numa enorme fossa a céu aberto,
imundície perigosa e, acima disso, humilhante para quem sente a dor de
Mossoró.
Encerro antes de ceder à tentação de narrar o caso da senhora que
apareceu para uma sessão de fotos em meio à tragédia e pegou o beco
sem resolver patavina, dizendo ser natural o povo sofrer. Acinte
completo. Paro também porque recebi a notícia de que a enchente, por
causa do canal irregular feito no Paredões pela prefeitura, avança
rumo ao sítio onde guardo meus livros, único patrimônio que amealhei
em 22 anos de luta.
* Texto escrito aos 3 de abril de 2008 e "esquecido", até ontem, na
"memória" do computador.
sábado, 18 de outubro de 2008
A professora
Os rapazes iam ao delírio. Corações palpitantes, mãos frias, pernas tremendo, suspiros, pensamentos em voz alta. Tudo isso por causa da professorinha que atravessava o corredor azul-marinho da escola, flutuando em passos macios de generoso gingado, até romper o umbral da sala de aula, distribuindo bons-dias perfumados com o aroma daquela boca pequena, enfeitada em tom delicadamente vermelho.
A turma retribuía o cumprimento - “Bom-dia, fessora!” -, sem sair do transe. Aí, quedava em adoração, enquanto a jovem senhora realizava a chamada, entornando o castanho sem-fim de seus olhos sobre o verde-pálido da folha de freqüência. Nome por nome - “Fulano... Beltrano... Sicrano...” - envolvido num sotaque não se sabe de onde, chiado nos dês e nos esses, circunflexo nos agudos, que maravilha.
As meninas, em floração, fantasiavam ser do mesmo jeito. Inveja benfazeja em relação a uma deusa em carne, osso e sedução. Cochichando em bilhetes libidinosos que, fileira a fileira, alcançavam cada quadrante do ambiente, os meninos exclamavam: “Que lábios! Que voz! Que pele! Que coooorrrpo! Que aula!”. Choque de luz nos sentidos das criaturas, nublados por violentos bombardeios de hormônios.
Errado dia, nas férias, a mestra-escola partiu. Para onde, sabe lá o destino, esse gênio iconoclasta que subjuga até mesmo as divindades, sem a gentileza de explicações quaisquer. Dizem, mudou-se para o Rio de Janeiro ou São Paulo. Dizem, viram-na num show do Pink Floyd no Camden Tow, Londres. Dizem, voltou para o monte Olimpo, convencida pelos deuses de Homero a ocupar seu lugar de direito.
Penso que ontem, talvez anteontem, possivelmente semana passada. Conversa, isso aconteceu... dia desses. Pronto, combinemos assim, ela voltou dia desses ostentando novo corpo, agora de aparência balzaquiana, dirigido por olhos de Capitu. A voz costurando o velho chiado dos dês e dos esses na antiga circunflexão que perverte os agudos tornou-se levemente rouca, festa para os tímpanos da moçada.
A galera tresvaria em déjà vu, atenta muito mais na boa “tia” do que nas boas lições dela, embora inteligência e beleza incrementem a fórmula do desejo. Será que a dita percebe, como se fosse musa da canção buarqueana, os arroubos desses bandidos invadindo-lhe os ouvidos e as janelas do vestido? Se não os sente, se não se arrepia, besteira, eles seguem a sonhar a sós, porque aluno é criatura renitente.
sábado, 4 de outubro de 2008
Destino
O soneto perdido nos confins
Do livro amarelado na estante
Será redescoberto num instante
Por batalhões de traças e cupins.
Os bichinhos famintos de aforismo
Provarão degustando verso a verso
Conhecer para frente e ao inverso
O valor nutritivo do lirismo.
E o poema de amor enclausurado
Entre as folhas do livro condenado
Seguirá finalmente outros trajetos.
Servirá, quem já fora nalgum tempo,
Da nobreza do espírito alimento,
Para encher a barriga dos insetos.
sábado, 27 de setembro de 2008
Palestra internacional
O auditório do Hotel Thermas é enorme e linear, arrumado de modo curioso, com cadeiras altas na parte da frente e assentos baixos atrás. A turma do fundão, por causa desses detalhes, não enxergava quase nada do que transcorria na tribuna de honra, onde conferencista, debatedor e presidente da mesa preparavam-se para discorrer sobre o tema La red de mercociudades: globalización, integración regional y desarrollo local.
A localização do astro da noite, o argentino Carlos Nahuel Oddone, ninguém da metade para a retaguarda conseguia dizer com certeza. Tinha-se apenas idéia, graças à única pessoa visível além do mar de cabeças formado ao longo daquela sala enorme de comprida: juiz Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho, que, do alto de seus aproximadamente dois metros, dava pistas a nosotros, lançando olhar diagonal para a esquerda.
O conterrâneo de Jorge Luis Borges, de Ernesto Sabato, de Ricardo Rojas e de minha ex-colega Anica, aluna mais tesuda do Eurocentres de Brighton, começou pedindo desculpas por não falar necas de pitibiriba em português, motivo pelo qual sua conferência seria em espanhol. Aí, o convidado passou a defender a importância de uma ampla reforma político-institucional com o objetivo de incluir os municípios na agenda do Mercosul.
Pouca gente compreendeu. Nem sei o quanto entendi. Só sei que a confusão ampliada pela má qualidade do som, problema solucionado muito depois, deu origem a um terrível burburinho. As pessoas da traseira, sem verem nem ouvirem, muitas não capturando bulhufas do espanhol portenho, começaram a reclamar em voz alta e, em seguida, a abandonar o local. Saíam “em revoada”, como diria o meu saudoso amigo Gomes Filho.
O clima ficou chato, constrangedor. O barulho crescente piorava a audição e o abandono massivo da assistência denotava grosseria para com alguém que, apesar das barreiras lingüísticas, esforçava-se para se comunicar. Lembrei-me então do professor Vingt-un Rosado, mais especificamente da história acerca de uma palestra internacional que ele me contou há muitos anos, com o testemunho das ondas do sagrado mar tibauense.
Pediram a Vingt-un para reunir intelectuais a fim de ouvirem um sujeito da França. No dia e na data marcados, o auditório estava repleto. Pessoas bem vestidas, educadas, ouvindo em elegante silêncio, aplaudindo nas horas certas, rindo quando se era para rir. Ao final da conferência, ministrada em francês, o camarada agradeceu a Vinte-e-Um, sem disfarçar o susto por encontrar tantos falantes da Língua Francesa em Mossoró.
Dando aquela risada gorda que lhe apertava os olhos, o criador da Coleção Mossoroense cochichou, não exatamente assim, embora com o mesmo sentido: “Esses intelectuais são cassacos da fábrica de gesso, aos quais pedi que viessem prestigiar seu amigo”. Analfabetos na maioria, os operários da gipsita não tiraram proveito da falação, mas agiram com a paciência dos sábios, algo que muito dotô do Direito precisa aprender.
sábado, 20 de setembro de 2008
A biblioteca
Comecei por volta dos 15 anos a juntar os livros de minha singela biblioteca, único bem material – ou conjunto deles – amealhado desde quando comecei a trabalhar no O Mossoroense, pouco abaixo dessa idade. Vim querendo sei lá o quê, pois meu sonho era a medicina, seguindo tradições familiares. Mas jornal apaixona e aqui estou desde então.
Cheguei sem escrever um “o” com uma quenga. Também detestava leitura, para desgosto da família. O pouquinho que sei aprendi aqui, graças aos ensinamentos do ofício e a duras rotinas de estudo. Do amor ao jornalismo, veio o amor à literatura e surgiu a coleção livresca que já atravessou dois casamentos, várias mudanças e uma inundação.
Os volumes encontram-se guardados na Rua dos Bobos, nº 0, na casinha branca de janelas e portas amarelas construída por Vingt-un Rosado e duplicada por mim. Fica no ponto mais alto do Sítio Mororó, antigo Canto de Lahyre, lugar exato da morada antiga onde minha bisavó paterna se refugiou, em 1927, para se proteger do ataque de Lampião.
Muitos visitantes, vendo paredes tomadas por aço e papel, perguntam-me quantos livros tenho e se li todos eles. Em relação à primeira dúvida, respondo não saber. Nunca os contei, talvez sejam cinco, seis mil, talvez mais, quem sabe menos. Coisa nanica diante dos acervos registrados pelo poeta Lívio Oliveira. Gigantesca frente à minha estupidez.
A segunda resposta também é negativa. Não, eu não li boa parte dos títulos que possuo nem me sinto obrigado a fazê-lo ou declará-lo para impressionar a platéia. Francamente, às vezes percebo não haver lido sequer os que li, em face do esquecimento e da confusão de vozes. Além disso, como diz Pierre Bayard, o “livro se reinventa a cada leitura”.
Na metafísica de Borges, o mundo é a biblioteca sem fim na qual os homens, mesmo empenhados na busca do conhecimento, jamais conseguirão escalar todas as prateleiras. Na melhor das hipóteses, sobreviverão sem traumas à perspectiva medonha “de que tudo está escrito”, mas que seu acesso se resumirá a quantidades miseráveis de textos.
Extinta a raça humana, a Biblioteca de Babel permanecerá “iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”. Espero de igual modo que, extinta minha humanidade, a pequena biblioteca da Rua dos Bobos, edificada livro a livro com tanto zelo, continue e se engrandeça aos olhos dos que virão.
sábado, 13 de setembro de 2008
A espada de Chambord
Minha mãe é pacifista militante. Abomina armas, sejam de fogo ou brancas, sejam de verdade ou de brinquedo. Seus instrumentos de defesa são coragem desmedida, inteligência vibrante e palavra certeira. Jamais entregaria, portanto, qualquer objeto mortífero nas mãos de um filho, constatação que a transformava em grande suspeita dos seguidos desvios da espada imaginária que tio Jório freqüentemente me enviava de Fortaleza.
Eu ficava danado da vida por ser criança pequena do Rabo da Gata sem independência para empunhar a peça rara que, segundo o remetente, pertencera ao saudoso General Sei Lá das Quantas. O drama se repetia cada vez que meus pais iam à capital cearense, na época em que se tinha Mossoró como a maior cidade alencarina em solo potiguar. Nossa TV era a Verdes Mares, nossas ambições mercantis, o Roncy e a Mesbla.
Ocorre que Jório da Escóssia, figura lindíssima, brincalhão inveterado e, o mais importante, irmão de vó Lourdinha, telefonava, avisando-me: "Cidoca, quando sua mãe chegar por aí, cobre a ela a espada que lhe enviei." Nossa Senhora das Bicicletas! O coração ficava em tempo de explodir a cachola do peito, tanta a ansiedade naquela espera sem fim que sempre terminava em frustração, pois o presente nunca foi entregue ao destinatário.
Mamãe, coitada, sofria horrores, tentando convencer-me de que tudo aquilo não passava de brincadeira de "Jorinho", forma pela qual o trata a esposa, tia Maria Teresa, pessoa igualmente querida. Nada, no entanto, aplacava o mau humor do menino besta que se imaginava gente grande e a quem somente importava a famosa espada do saudoso General Sei Lá das Quantas que o tio-avô enviara, em demonstração de carinho e confiança.
A brincadeira integrou-se às tradições familiares. Mesmo vendo meus cabelos brancos, tio Jório ainda pergunta se me deram seu presente e, de certo modo, já posso dizer que sim. Recebi há pouco, das sagradas mãos de minha mãezinha, uma bela espada de brinquedo, com timbre de Chambord. Partindo dela, não seria de aço, mas tem a nobreza de trazer a infância à boca do estômago e de me arrebatar meia dúzia de lágrimas.
sábado, 6 de setembro de 2008
Língua
Minha língua é a foz da velha trama
Da saliva que brota no arrepio,
Quando a boca no peito se derrama
Inaugurando o leito deste rio.
Desce ao sopé florido da montanha,
Sobe noutra, mas antes que se instale,
Seduzida no ardor, já não se acanha,
Desembesta dançando pelo vale.
Vai correndo com lânguida destreza,
Levando em ziguezague a correnteza
De suor, d’água doce e de fissura.
Rodopia sem pressa, segue em frente,
Atravessa a floresta e, de repente,
Penetra o mar que geme de loucura.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Borboletas negras
Janeiro era o mês das borboletas. Vinham aos montes. Negras, enormes, e tomavam conta das paredes e do teto da casa. Ninguém as espantava, talvez por saberem-nas passageiras, talvez porque a residência era pouco freqüentada no período. Todos em Tibau, os meninos pelo menos. Em fevereiro, quando se voltava à rotina escolar, ainda havia muitas delas enfeitando o terraço e a sala, uma ou outra, aqui e acolá, aventurando-se em vôos rasantes.
O que se encontrava no retorno ao lar era, na verdade, a terceira geração desses seres alados, quem sabe a quarta. Sim, pois a borboleta vive em média duas semanas após a metamorfose, na fase denominada "imago", palavra adotada na psicologia para definir aquelas imagens que a pessoa idealiza na infância acerca de alguém querido e que se conservam, intactas, pelo resto da vida, como que congeladas e imunes ao sopro corrosivo do tempo.
Reza a tradição, e mestre Mário Souto Maior não me deixa mentir, que as borboletas negras, tão pretas quanto as da casa da infância ou quanto a que pousou na testa de Brás Cubas, são mensageiras de maus presságios e da morte. Algumas culturas consideram-na espíritos de bruxas ou de anjos pagãos. Para nós, moleques do Rabo da Gata, nada disso batia na cachola; eram somente borboletas que entravam pela passagem de ano e depois sumiam.
Sonhar com borboleta de qualquer cor, na sentença de vários intérpretes, significa "sorte no jogo". Para outros, representa "metamorfose". Zhuang Zi, filósofo chinês nascido no ano 370 a.C, narrou a seu povo, com a perspectiva de figurar "o resultado da transformação das coisas", a fábula na qual ele próprio sonhara ser borboleta e, ao despertar, já não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se uma borboleta que imaginara ser homem.
Sei lá se feiticeiras reencarnadas, se almas de crianças pagãs. Sei lá se mensageiras da má sorte, da sorte, da morte, da vida. Sei lá. Só sei que por estes dias de agosto, uma enorme borboleta negra, "escanchaneta" das borboletas de antigos janeiros, entrou pela janela, fez o reconhecimento do ambiente, pousando, enfim, como se fosse o primeiro quadro fixado na palidez vertical do recinto, como se fosse a infância estampada na parede.