sábado, 2 de outubro de 2010

15 de março de 1852



Véspera das eleições 2010, abro a “História de Mossoró”, do mestre Francisco Fausto de Souza, que a brava Coleção Mossoroense acaba de republicar. A quarta edição, com orelhas de Wilson Bezerra de Moura e prefácio de Lemuel Rodrigues da Silva, traz nas páginas 24 e 25 narrativa sobre a emancipação política do município que acaba de comprar o título nobiliárquico de “Metrópole do Futuro”.

O livro é um daqueles, na linha do “Mossoró”, de Vingt-un Rosado, do “Notas e Documentos para a História de Mossoró”, de Luís da Câmara Cascudo, e do “Executivo e Legislativo de Mossoró – numa viagem mais que centenárias”, de Raimundo Soares de Brito, que os senhores vereadores deveriam haver ao menos folheado antes de violentar nossa inteligência com a malfadada Lei nº 2009/2004.

Esse monstrengo legislativo – ainda em vigor – faz de 9 de novembro de 1870 o dia a partir do qual teríamos conquistado o direito de eleger nossos valorosos edis. O correto, no entanto, é 15 de março de 1852, data em que o multifacetado capitão José Joaquim da Cunha, presidente do Rio Grande do Norte, assinou a Lei Provincial nº 246, emancipando-nos de Assú. Nas letras de Francisco Fausto:

“CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO – Pela Lei Provincial nº 246, de 15 de março de 1852, fora o território da ribeira de Mossoró desmembrado do município do Assu, a quem sempre pertencera, formando um novo município e elevada a respectiva povoação à categoria de vila de Mossoró”. E mais: “Neste mesmo ano foi eleita a primeira Câmara”, presidida pelo reverendo “Antônio Freire de Carvalho”.

A lei nº 620, de 9 de novembro de 1870, que confundiu os legisladores do século XXI, limita-se, de forma lacônica, a dizer “Fica elevada à categoria de cidade a Vila de Mossoró”. Tratou-se, a bem da verdade, de um gesto emocional, sem efeitos práticos, intentado pelo deputado vigário Antônio Joaquim. A diferença entre vilas e cidades, na época, era apenas a potencialidade econômica do lugar.

O brasão de Mossoró, estampado em todos os documentos do Legislativo, inclusive no timbre da Lei nº 2009/2004, traz numa faixa verde-amarela a inscrição “Município de Mossoró 1852”. O símbolo, de acordo com o historiador Geraldo Maia, existe desde 1912, havendo sido incluída a data magna graças à lembrança do então presidente da intendência, o apodiense Francisco Izódio de Souza.

Nem era preciso fazer o extraordinário esforço de abrir um livro ou de se submeter ao desgaste de consultar quem perde tempo estudando o passado daquela que Túlio Ratto apelidou de “Megalotrópole do Semiárido”. A data real estava na cara dos vereadores que reescreveram a história da “Terra da Liberdade”, justo privando-a de 18 anos de emancipação, erro crasso que infelizmente persiste.

sábado, 25 de setembro de 2010

O cronista



Quem carrega nos ombros a obrigação de escrever uma crônica diária precisa estar atento às ocorrências cotidianas para não perder, no detalhe que passa despercebido aos olhos dos outros, a essência daquele texto capaz de arrebatar a atenção do leitor.

Um homem dormindo no canteiro entre flores bêbedas, a cachaça das segundas-feiras derramada sobre a mesa, os nomes das garçonetes de olhos castanhos, o isqueiro de fogo-morto, o brilho da plateia de vaga-lumes diante das estripulias do vento.

O caos no interior das bolsas femininas daria uma ótima história, mas não tão boa quanto o que poderia ser escrito a respeito da agendinha da mulher de 30, onde o poema de Ferreira Gullar rasga a garganta do tempo e mata, na arte, a rigidez dos compromissos.

Há pouco, tropecei em três causos: o grupo de meninos jogando bola de meia no Centro, num desafio ao império dos automóveis, a velha em lúcido bate-papo com a solidão e o sanfoneiro do quadro de Assis Marinho dando ritmo ao silêncio da galeria.

Nada, nada pode escapar e tudo precisa ser analisado com muita pressa, pressa de formiga à beira do inverno, pressa de quem corre para encontrar a pessoa amada, pois a crônica da edição seguinte pede urgência e o jornal é uma pilha de nervos na hora do fechamento.

sábado, 18 de setembro de 2010

Meio século



O vate Genildo Costa festejou 50 anos na última sexta-feira, com rega-bofe para os camaradas. Aquela cachacinha paraibana, o camarão pescado em Grossos especialmente para o evento, o violão afinado em ré. Cantou, chorou, recitou versos, distribuiu numa das paredes do terraço fotografias arrancadas do fe-o-fó do baú, imagens do tempo em que nasceu o grupo Poema, movimento responsável por fase deveras interessante da cultura mossoroense.

Naquela época, cometíamos sonetos de pé-quebrado, brincando de ser poeta. Saíamos de bar em bar fazendo a Arte Intrusa, ideia de Rogério Dias, desafinando o coro dos contentes (“lat’s play that”), roubando aqui as palavras de Torquato Neto. Parávamos o trânsito no “Sinal de Poesia”, interferência amarelinha de Laércio Eugênio. Batíamos as feiras livres do Estado na Camelagem Cultural, liderados pelo nosso eterno presidente Caio César Muniz.

Costinha possuía sete fios de cabelo a mais encurtando alguns micrômetros a careca reluzente e dava trabalho a dona Irene, a primeira dama, com nossas farras literárias. Levou-nos certa feita, a mim e a outro companheiro, ao único prostíbulo do mundo onde não há mulheres, ali para as bandas do conjunto Abolição IV. Questionado sobre essa curiosa circunstância, respondeu sem pestanejar: “Claro que não tem, porque não traio minha esposa”.

Desenterrou além das lembranças, a coleção de vinis: Chico, Tom, Rita, Gil, Caetano, Belchior, Zé Geraldo, Zé Ramalho. Bolachões “cheirando a guardado de tanto esperar”, mas em perfeita harmonia com o ambiente saudosista. Ouviram-se várias faixas de vários LPs. A hiperatividade do proprietário nunca o deixou, e não o deixaria agora, ouvir o disco inteiro. O chiadinho nas caixas de som, os saltos da agulha. Qual, entre os novos, terá esse privilégio?

Noite de parceiros, apesar das faltas sem abono. Noite boa. Noite Curta. Poucos dentre nós, tomados de calvície ou de cabelos brancos, quando não atingidos pelas duas coisas, preserva os hábitos noturnos. Noite do vaqueiro dos bois-bumbás que avistou Virgílio escrevendo a saga de um amor profano. Noite do meio século de Genildo, poeta em letra e música, coração de gigante, ótimo caráter, sonhador dos sonhadores, a quem desejo vida longa.

sábado, 11 de setembro de 2010

Os vinte e um de Seu Rosado



A matéria remunerada com nosso pobre dinheirinho na qual a Veja inclui Mossoró entre as “metrópoles do futuro” atiçou a curiosidade sobre a descendência de Jerônimo Rosado. Entre os erros verificados no texto, que estragaram a propaganda, está a invenção de dois meninos que as mulheres do patriarca nunca tiveram: Jerônimo Premier e Jerônimo Second.

Seu Rosado nasceu em Pombal-PB, aos 8 de dezembro de 1861, filho de Jerônimo Ribeiro Rosado e Vicência Maria da Conceição Rosado. Formou-se em Farmácia no Rio de Janeiro, onde atuava como fiscal da iluminação pública. Voltou ao seu Estado em 1889, quando abriu a primeira botica em Catolé do Rocha e desposou Maria Rosado Maia, a Sinhazinha.

O casal teve três filhos: Jerônimo Rosado Filho, médico, farmacêutico e poeta, morto aos 30 anos; Laurentino Rosado Maia, falecido criança; e Tércio Rosado Maia, farmacêutico, odontólogo, advogado, poeta, pioneiro do cooperativismo brasileiro, comerciante de livros usados, professor universitário. Sobre “Premier” e “Second”, só a fonte maluca de Veja ouviu falar.

Sinhazinha partiu em 1892, pouco depois do último parto, vítima de tuberculose. No leito de morte, conforme relata mestre Luís da Câmara Cascudo, pediu “que o marido a fizesse sepultar no Catolé do Rocha, na terra onde nascera. E casasse com sua irmã Isaura, para que não tivessem madrasta, mas outra mamãe os dois pequenos órfãos, Rosadinho e Tércio”.

Reivindicações atendidas: o corpo de Maria Amélia foi sepultado naquele recanto sertanejo e o viúvo, de 32, casou-se com a cunhada, de 17 anos, em 1893. A noiva se mudou para Mossoró, onde o marido residia e para onde transferiu os negócios em 1890, a convite do médico e líder político Francisco Pinheiro de Almeida Castro, patrocinador da drogaria.

Do segundo enlace advieram 18 rebentos, nem todos chamados “Jerônimo” e nem todos numerados, contrariando a lenda contada à revista para desgraça do repórter desavisado. A lista é grande, mas o interesse, creio, é ainda maior. Por isso, transcrevo-a com base nas certidões de nascimento e casamento colecionadas por Cascudo, na biografia de Seu Rosado.

Izaura Rosado (com z)

Laurentino Rosado Maia (homônimo do segundo)

Isaura Sexta Rosado de Sá

Jerônima Rosado, que tem como apelido o nome de “Sétima”

Maria Rosado Maia, que tem como apelido “Oitava”

Isauro Rosado Maia, que tem por apelido “Nono”

Vicência Rosado Maia, que como apelido o nome de “Décima”

Laurentina Rosado, que tem como apelido o nome de “Onzième”

Laurentino Rosado Maia, que tem como apelido “Duodécimo”

Isaura Rosado, que tem como apelido o nome de “Trezième”

Isaura Rosado, que tem como apelido o nome de “Quatorzième”

Jerônimo Rosado Maia, que tem como apelido o nome de “Quinzième”

Isaura Rosado Maia, que tem como apelido o nome de “Seize”

Jerônimo Rosado Maia, que tem como apelido “Dix-sept”

Jerônimo Dix-huit Rosado Maia

Jerônimo Rosado Maia, que tem como apelido o nome “Dix-neuf”

Jerônimo Vingt Rosado Maia

Jerônimo Vingt-un Rosado Maia.

Exatamente dessa forma estão os documentos reproduzidos na obra cascudiana “Jerônimo Rosado – uma ação brasileira na província – 1861-1930”, inclusive com a curiosa expressão “que tem como apelido”. Quem quiser, consulte o livro na biblioteca pública ou no acervo da Coleção Mossoroense, porque o meu não empresto nem por cem e uma cocada preta.

sábado, 4 de setembro de 2010

A metrópole de Premier e Second



Passei dias de ansiedade, senti até embrulhos no estômago, até receber a Veja com a badalada presença do País de Mossoró. Domingo cedinho, dei plantão na portaria do prédio onde moro e, enquanto esperava o distribuidor, não conseguia tirar da cabeça a frase de marqueteiros europeus criada para a prefeita repetir ao final de seus discursos: “Mooossoróó, boom de trabalhaaar, melhor de vivê”.

Recebi a revista, sapequei os olhos na página indicada, murchei. O textículo posterior aos investimentos feitos na Editora Abril com nosso rico dinheirinho, sem mencionar a aquisição dos exemplares para o programa “Bolsa-Veja”, traz indicadores falsos, omissões convenientes ao oba-oba e erros históricos ridículos. Balde de água gelada no juízo do cidadão apaixonado pela Terra da Liberdade.

Se a ideia era atenuar a atmosfera desfavorável aos ocupantes do Palácio da Resistência, que amargam desaprovação recorde, a estratégia falhou e dificilmente redundará em dividendos eleitorais para os aliados. Isso porque pessoa alguma dará crença a tais presságios, nem aquelas que receberam a Veja com a página 110 destacada por uma fitinha azul-bebê e o cartão subscrito pela burgomestra.

Quem passa por aqui com relativa frequência sabe que a rede de saneamento básico atende menos de metade da “metrópole do futuro” também conhecida como “Cidade sem Presente”, na genial denominação da jornalista Ana Paula Cadengue. Tascaram 85% na matéria. Engraçado que, no dia seguinte, um gerente municipal desavisado falou em cerca de 50%. A Caern bate o martelo em 40%.

A “programação intensa” do Teatro Dix-huit Rosado é outro ponto controvertido, mas o pior é o que não se diz sobre o “Leão do Nordeste” e sua “população ávida por cultura”, em especial o enfraquecimento dos outrora grandes espetáculos. Auto da Liberdade, Chuva de Bala, Oratório de Santa Luzia amofinam pela redução de investimentos públicos. Sim, o museu! Fechado há quanto tempo?

“Há dez anos”, diz a peça jornalístico-ficcional, “lá não havia edifícios com mais de três andares”. A sede do Banco Mossoró, construída há décadas no Centro, tem cinco fora o térreo. Igual dimensão, pertinho dali, existe o Hotel Imperial, construção de 1990. No Alto de São Manoel, também dos anos 1990, localiza-se o Sabino Palace, de quatro andares. Prédios residenciais, desses nem se fala.

Problemas não há na região do “pós-sal”: favelização, pior sistema de transporte coletivo do Brasil, desemprego, comunidades rurais sem água, áreas urbanas intrafegáveis e às escuras, lixo e esgotos a céu aberto são tudo invenção da imprensa marronzística caluienta. Só na mente dos inimigos do “pogresio”, a candidata ao posto de “cidadona” já é a megalópole dos desacertos “estruturantes”.

Nem tudo é decepção. As referências à prole do avô da prefeita são hilárias. “Jerônimo Rosado batizou todos os filhos homens com seu próprio nome e com o número, em francês da ordem em que nasceram”. E segue: “Seu primogênito se chamou Jerônimo Premier, o segundo Jerônimo Second e por aí foi, até Vingt-un Rosado Maia”. Como diria o vate Laélio Ferreira, “Ai, minha canela!”.

O primogênito dos 21, apenas para constar, chamava-se Jerônimo Rosado Filho. O segundo, morto poucos dias após o nascimento, recebeu a graça de Laurentino Rosado Maia. “Premier” e “Second” – figa, diabo! – não passam de personagens de uma dentre as tantas brincadeiras de mau gosto que a fonte alvejante, talvez membro da gloriosa nação smurf, fez com a ótima equipe da Veja.

sábado, 28 de agosto de 2010

O deputado



Capitão Caverna provoca, ele gosta, mas não entro nessa. Quer texto sobre as eleições 2010 com foco nos candidatos excêntricos, bizarros, engraçados, incomuns, seja lá qual for a denominação adequada. Menciona o forrozeiro Dagô, o conterrâneo Miguel Mossoró, o senador positivo-operante e o índio que vive de fazer garrafada e simpatia.

A melhor performance, assegura, é a do índio. Também gosto do estilo das penas do cocar, do cachimbo de angico e do som dos tiros, três ou quatro, ouvidos ao final da participação. Lembram uns vinis de faroeste que papai tinha com a foto de Trinity e John Wayne na capa. As músicas, soladas de flauta, eram entrecortadas por estampidos.

Onde estão Super Moura e Xeique Humberto? Pergunta. Consulto os ex-universitários. Habner Weiner, repórter de peso a caminho da magreza cirúrgica, suspeita estarem infiltrados em hostes adversárias, a serviço de Ravengar. Bruno Barreto, editor político, esclarece: a candidatura do Super foi indeferida e o Xeique virou militante governista.

Menciona Tiririca, em São Paulo, cuja plataforma é descrita da seguinte maneira: “O que é que faz um deputado federal? Na realidade eu não sei, mas vote em mim que eu te conto. Vote no Tiririca, pior do que tá não fica”. Lindo! E ao som de uma belíssima paródia do clássico “Florentina, Florentina, Florentina de Jesus...”, ele extrapola a perfeição.

A propósito, ouvi sexta-feira na FM-103, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern), o exercício de radiodramatológico de título “O deputado”. A peça, que em Mossoró teria outra inspiração, satiriza o tipo de agente público – não os amigos de Caverna – que aterroriza os assessores esfolando a gramática na ânsia do improviso.

sábado, 21 de agosto de 2010

Soneto (ainda) sem título



Ela jura que a lua guarda as chaves
Do perfume das flores de sua alma,
Que as estrelas, embora tão suaves,
Acendem-lhe vulcões na face calma.

Aos sussurros noturnos já responde,
Aos gritos das manhãs se faz de mouca,
Dos apelos do Sol foge e se esconde,
Quando os dias se apagam vira louca.

Um poeta a beijou sem saber nada,
Perdeu-se de mais nunca se encontrar
Depois de a luz romper a madrugada.

Diz-se até que ele vai envelhecer
Sonhando cada noite a encontrar
Para cada manhã a esquecer.

sábado, 7 de agosto de 2010

A nuvem chupando água



Aconteceu numa dessas manhãs em que Tibau parece uma garrafinha de areia colorida trabalhada pelas mãos mágicas de Josefina, com o mar sereno, coqueiros manhosos e o sol avermelhando a tez dos morros seculares.

Nos alpendres, meninos transformavam papel, cola, linha, varetas e retalhos de pano em objetos alados. Cada qual querendo fabricar a melhor pipa, que fosse mais bonita, mais forte e levasse mais alto os sonhos da infância.

Vencer um duelo de pipas era o máximo, era como derrotar exércitos poderosos em batalhas nas quais ninguém se feria, era o triunfo da inocência na guerra em que, recolhidas as armas, ganhadores e perdedores partiam livres de rancor para novas aventuras.

Naquele dia, porém, mal os meninos empinaram as pipas, a brincadeira foi interrompida por um acontecimento estranho, pelo menos para os que ainda não conheciam certos mistérios tibauenses.

Tinha jeito de história de pescador, daquelas contadas por Ananias ou das que as avós inventam em noites de insônia para fazer criança encontrar o sono. No entanto, o fato ocorria de verdade, unindo céu e mar bem antes da linha do horizonte.

Mesmo quem já havia visto o Batatão correr sobre as águas da Barra ou escutado o destacamento de soldados fantasmas fazer evoluções no Morro das Sete Cores assustou-se ao ver uma tromba sair da cara duma nuvem e entrar no oceano.

Mais espantoso foi perceber que a tromba transparente sugava água em frenéticos movimentos aspirais. De repente, o vendaval tangeu a nuvem e a tromba começou a encolher assim que tocou o solo, desaparecendo no firmamento em poucos segundos.

Talvez os meninos de ontem tenham encontrado, na vida adulta, explicações para o que viram, mas naquele tempo prevalecia a ciência de Tidó, de que as nuvens, quando sentem sede, bebem a água do mar.

sábado, 24 de julho de 2010

A vizinha



“Há um bocado de gente
Na mesma situação
Todo mundo gosta dela
Na mesma doce ilusão
A vizinha quando passa
Que não liga pra ninguém
Todo mundo fica louco
E o seu vizinho também.”
Dorival Caymmi

O instrumentista Danilo Caymmi, assim o apresentam, cantou aquela música da vizinha, composta por seu pai, Dorival Caymmi: “A vizinha quando passa/ com seu vestido grená/ todo mundo diz que é boa/ mas como a vizinha não há...”. Antes, disse que a moça, possivelmente baiana, existiu de fato e que, segundo a tradição, fazia jus à homenagem do velho.

Lembrei-me da vizinha de um dos meus primos, morador, à época da história, da avenida Alberto Maranhão, ali no centro. Não revelo o nome dele para não entregar a beldade por tabela. O endereço já é muito. A danada tomava banho no quintal nos finais de tarde, nuinha, nuinha, povoando os pensamentos da meninada com aquele corpo dos seiscentos capetas.

Ensaboava-se com visível prazer. Devagar. Cada parte. E o vento, criatura de sorte, arrepiava-lhe a pele depravadamente morena. Quando em vez, pousava os olhos castanhos sobre um dos ombros, enquanto se esforçava para alcançar a maior área possível das costas. Balzaquiana. Isso, devia ter seus 30, idade das idades. Nós, os voyeuristas, por volta dos 15.

Foi a época em que comprei meu primeiro Kama Sutra. Doido para experimentar as acrobacias eróticas ensinadas naquele santo livrinho, em meio ao apelo dos hormônios. Ah se tivesse sido com a vizinha, o papai-mamãe, a cadeira de balanço, o aprisionado, a oferenda, a sonolenta, a catalã, a medusa, o arco, a catapulta, a profunda, o furor selvagem ou a libélula.

Quanto alumbramento, quantas vezes toquei aquelas curvas, aquelas coxas, aquela bunda, aquele sexo, com as mãos púberes. Quantas vezes me despi, e a cheirei, e a lambi, e a mordi, e a penetrei com firmeza, sem que ela soubesse, sem que ela sentisse o gozo, os fluidos despejados em sua boca, sem que ela imaginasse quem a desejava além das fantasias.

sábado, 17 de julho de 2010

"Volta, Canindé!"



Pintou nostalgia. Deve ser o “uisquito gringo”. A terceira dose, feito o conhaque de Drummond, deixa a gente “comovido como o diabo”. Ainda mais assim, sozinho, caneta e guardanapo sobre a mesa. De repente, entre rabisco e outro, que se imaginavam poesia, as letras mal-amanhadas formam um nome nada afeito ao lirismo: Canindé Queiroz, fundador da Gazeta do Oeste, polemista ferino, que marcou época no jornalismo “tupiniquim”, despertando sentimentos de amor e de ódio.

Brigou com muita gente, quase o mundo inteiro. E de peito aberto, sem se esconder na barra da saia do anonimato. Nem eu, menino velho, escapei. Acusou-me de algo engraçado: ser rosalbista. “Tem rosalbista editando o vetusto O Mossoroense”, dizia, irado, porque o jornal não se filiou à campanha dele contra Rosalba Ciarlini. Quando passei no vestibular para o curso de Comunicação Social da UFRN, telefonou-me lamentando o que considerou “rebaixamento de profissional a estudante”.

Fez escola com o famoso estilo arrasa-quarteirão, tanto que, embora não escreva há anos, ainda inspira profissionais e comunicadores leigos, inclusive e estranhamente umas vítimas de seus escritos, nos tempos áureos da coluna “Penso, Logo...”. Isto, Freud explica. Vem daí, na terra de Souza Machado, a incapacidade para se distinguir entre crítica e agressão, bem como a ideia de que jornalista bom é o sujeito escroto que bota para moer, escreve palavrões, desaforos, humilha e ridiculariza.

Na briga com Gustavo Rosado – vixe, parece que foi ontem! –, Canindé banhou de ouro um baú de injúrias, calúnias e difamações. Referências tão descabidas só voltaram a ser feitas ao hoje secretário do Gabinete da Prefeita, em processo judicial recente, quando advogados interrogavam falsários do vuco-vuco. A defesa de Gustavo contra a Gazeta do Oeste coube ao movimento artístico e, creiam-me os jovens, a este jornaleco que o Palácio da Resistência persegue com energia e entusiasmo.

A guerra contra o Colégio Sagrado Coração de Maria (Colégio das Irmãs), sem poupar as freiras, as mães de alunos nem o Papa João Paulo II, a quem desejou penetrações profundas em sete vias e com areia da praia, suscitou debates além das fronteiras do Rio Grande do Norte. E não havia Internet. Carlos Santos, editor da Gazeta, à época, impediu a publicação do texto em que o chefe utilizava cinquenta sinônimos de “homossexual” para designar respeitado sacerdote de nossa paróquia.

Não conseguiu evitar, no entanto, que certo jurista tivesse o lombo – como era mesmo a expressão? – “amaciado com porrete de jucá”. O homem não merecia, asseguro, mas apanhou até o colunista cansar o braço de tanto bater. Ah, voltou-se também contra colega nosso, de redação, estimulando-o a usar cangalha como fardamento de trabalho. Vários professores da Ufersa, além de empresários de dentro e de fora do “condomínio”, sentiram o peso das palavras com as tintas de CQ.

A campanha anti-Rosalba, mencionada no início deste arremedo de crônica, foi das mais cruéis, equiparando-se a episódio de há pouco, tendo por alvo a deputada federal Sandra Rosado. Em ambos os casos, as ofensas são intranscritíveis e atingiram níveis extremos. O contra-ataque da Rosa, pelas vias judiciais, arrasta-se por 15 anos, impondo severas indenizações à Gazeta, sem, contudo, desarticular a estrutura do jornal, que se mantém e cresce graças à competência de Maria Emília.

Esse relato comparado ao estilo dos neopolemistas dá uma saudade! Imagino até realizar a campanha “Volta, Canindé!”, lá no “tuíte”, como estímulo para que o mestre retorne às páginas da “urbe amada de todos nós”. CQ será idolatrado e o porrete de jucá convertido em bastião da democracia. Os únicos problemas, frente aos que se julgam seus discípulos, seriam os fatos de ele ser inteligente e ter coragem para assinar o que escreve. Mesmo assim, valeria a pena: “Volta, Canindé!”.

sábado, 10 de julho de 2010

Olhos



Jamais esqueci nenhum. Os primeiros eram negros, redondos, ornados por cílios enormes. Diziam pouco de si, apenas o bastante para encantar a garotada. E como seduziam! Seduziam e se aproveitavam da inocência dos meninos naqueles tempos de fogueira, milho verde e balão.

Os segundos, amendoados, apertavam-se na moldura do rostinho trigueiro e falavam pelos cotovelos. A poesia os agitava, dava-lhes o brilho das estrelas de grandeza superior. Por eles, os rapazes bebiam enormes goles no cálice do ciúme e faziam todas as besteiras juvenis.

Depois vieram uns cuja cor nem é bom mencionar. Diferentes dos primeiros, que enganavam sem malícia, estes mentiam por maldade, roubavam a pureza, a fé e lançavam qualquer pessoa na sarjeta, sem dó nem piedade. Quem escapou ainda traz as marcas de suas unhas no corpo e na alma.

Por outro lado, houve dois favos de mel. Os mais doces e meigos de todos, sempre empenhados em fazer o bem e em semear a felicidade nos corações humanos. Amavam de modo pleno, fiel e compreendiam as particularidades alheias, por estranhas que fossem ou parecessem aos comuns.

Os penúltimos eram depravadamente azuis, iguais àquelas metáforas batidas: azuis da cor do céu, da cor do mar, de anil etc, etc, etc. Loucos de pedra. Não mentiam por nada neste mundo, mas suas verdades rasgavam a carne com a violência de uma navalha cega, com a insensatez do fogo das paixões.

Os de ontem também surgiram azuis até se revelarem castanhos. A cada frase, dez mistérios que os tornavam ao mesmo tempo inocentes e depravados, verdadeiros e falsos, doces e amargos, generosos e cruéis. Por isso, meu amigo, deixo o aviso: caso os encontre pela noite, não arrisque fitá-los. Você pode imaginar o céu e cair no inferno.

sábado, 3 de julho de 2010

Profilaxia



Mastigo um punhado de palavras por vez, tentando encontrar sabor menos amargo nas construções verbais. Não devo vomitar orações unidas pela saliva grossa de ontem à noite, embora o desejo seja tanto e me consuma desde quando. É difícil, certas vezes, o sujeito conter a própria voz, ficar quieto, policiar-se para não botar a alma a negócio nas mãos do diabo, por momentos fugazes nos braços das fúrias.

Megera, mãe do ciúme, da inveja, do rancor, perseguidora implacável, eterna memória das fraquezas. Tisífone, marcando a loucura no compasso do chicote. Alecto, que alimenta as maldições no prato da soberba e rouba o sono dos incautos com as tochas do desassossego. São filhas da vingança, essas fúrias, existem desde antes de o mundo ser mundo, e perdem o homem mais que as ilhas de Drummond.

Também não cuspo. O azedo. Pedra. Espinho. Trituro. Engulo. Calado. Desce. Volta. Atravessa. Rumino. Truncado. Seco. Boca. Garganta. Estômago. Estômago. Garganta. Boca. Por enquanto? Para sempre? Sei lá! O tinhoso não sabe. Deus não sabe. O padre! Sim, o padre! O cão sabe! Ou imagina? Infeliz. Insípido. Inodoro. Indigesto. Filho da... Epa! Ponto. Pronto. Xapralá. Pronto. Ponto. Pronto... Ponto.

Sábio não se deixa seduzir por tais beldades. Sábio não vai às ilhas. A tentação pode ser grande, enorme, gigantesca, mas ele espera, porque conhece as voltas do mundo. Iazul. O idiota relincha palavras de ordem, mete as patas sujas pelas mãos e lança coices de ofício, ao som das ventosidades anais que lhe escapam em semitons. Não sabe, coitado, que as cobras morrem por excesso de confiança no veneno.

Perdoe-me, estimado leitor, pelos desarranjos no estilo, nesta viagem nas asas libertinas dos delírios. Tenho me contido para não escarrar na cara de fantasmas sem formação óssea, cartilaginosa ou moral que você desconhece, por sorte e saúde mental. E isso, para o ora pretendido, é desnecessário. Basta que os fonemas penetrem o juízo certo, na dose exata, para surtirem os efeitos profiláticos desejados.

domingo, 20 de junho de 2010

Templos de mármore



Vez em quando, recebo a ilustre visita do pastor João Leandro da Silva. Trato-o apenas por pastor Leandro, sem demérito ao João nem ao Silva, prenome e sobrenome do maior respeito, até pela consagração popular. É o costume e, principalmente, como ele se apresenta. Da última vez, na quinta-feira, trouxe-me a 39ª edição do jornal “Está Escrito”, que faz com o maior carinho, numa folhinha de papel “A4”, esse de escritório, para difundir ensinamentos cristãos.

Leio de coração aberto os informativos que o pastor me traz, mesmo sem nutrir sentimentos religiosos, pois a palavra está acima dos homens e sempre nos esclarece, e sempre nos encoraja: “O Senhor é contigo, homem valente”, diz a epígrafe retirada de Juízes, 6.12, para o texto “O cristão e os espíritos maus”, em que se diferencia o pecado e a ruindade, aquilo enquanto condição dos degredados filhos de Eva e isto como caracterização do espírito de porco.

***

Acaba de morrer o escritor José Saramago. Deu na televisão e na internet. O único Nobel de Literatura da língua portuguesa, segundo as primeiras notícias, dormiu bem de ontem para hoje (estamos na antevéspera da publicação desta crônica), tomou café da manhã normalmente, sentiu-se mal pouco depois e partiu, aos 87 anos, apaziguado nos braços da mulher amada, Pilar del Rio. Noite passada, fez constar no seu blog: “sem ideias, não vamos a parte nenhuma”.

***

Aberto e fechado o parêntese fúnebre, com necessária cautela para não ofender a pertinência temática, retorno ao pastor Leandro, só para completar o raciocínio. Pois bem, aí está um homem capaz de ir a todos os lugares, no sentido de Samarago, porque cultiva a reflexão, porque não teme se expressar, porque não foge do debate. Nossos diálogos, apesar de enxergarmos por óculos diferentes as questões espirituais, não criam barreiras nem azedam a cordialidade.

É dele a sentença ácida publicada aqui no O Mossoroense, aos 16 de julho de 2006, de que “a instituição chamada igreja é um cemitério que alimenta urubus, guarnecida por cães, os atalaias de quem fala o apóstolo Mateus, quando escreveu ‘Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres’ (24.28)”. Não chego a isso e nem poderia, por ignorância na fé. Concordo, entretanto, no sentido de que, seja qual for a entidade, ninguém se faz respeitar pela força.

Os templos de mármore, em cujos salões ecoam prepotência, arrogância e ódio, servirão de túmulo para as memórias de seus infelizes ocupantes. Que não me leiam tais criaturas, por “Deus”, para não tropeçarem na consciência pluralista do texto, caindo, na ordem, com o peso dos desaforos e das ameaças sobre esta pobre cabeça nordestina viciada em pensar. Mas se lerem e não gostarem, não gostem; se vierem, venham: estou até os dentes armado de liberdade.

domingo, 13 de junho de 2010

Palavras tardias



Ela escreve ao “antigo” amigo encurralando o adjetivo entre aspas para evocar o sabor da metáfora. Afirma não resistir à opressão do silêncio. É preciso quebrá-lo para falar das armas, dos golpes e da última ferida. Começa a escrever sobre o ato de escrever. Busca em Clarice Lispector a sentença de que às vezes “É duro quebrar rochas” com palavras, mas não perde a convicção: “Escrever é minha liberdade!”.

E livre, prossegue com o texto. Mede cada verbete, esquadrinha frase a frase, encadeia o fluxo dos parágrafos. Talento não lhe falta para o jogo das letras, tanto que os sons e as imagens se entregam de corpo e alma aos caprichos da moça de Marte e de Além Mar. Nas últimas linhas, avisa sobre o próprio funeral e acusa o poeta imaginário, o tal “antigo” amigo, pelo assassinato das flores no esplendor da primavera.

Apesar de tantas queixas, reconhece no criminoso a sinceridade. Reconhece que o sujeito a avisou inúmeras vezes acerca dos perigos que se escondem entre o sexo e o sabor das uvas fermentadas, principalmente no vácuo onde a arte se confronta com a vida, onde o desejo não é mais que um escravo iludido por falsas promessas de luz e a realidade implacável rouba sem remorso o viço e a poesia das madrugadas.

A doce Charneca em Flor que no mundo anda perdida e navega em navios fantasmas desejando mil coisas sem saber ao certo o que deseja apazigua-se, contendo o ímpeto da Roseira Brava para dizer que a feriram de morte com algo “cortante e afiado, tipo faca, estilete ou punhal” e declara friamente àquele que considera seu algoz: “Parabéns! Dessa vez você usou a arma certa e o sucesso foi imediato e absoluto”.

O poeta imaginário, inimigo do lirismo, recebe a carta. Lê. Relê. E responde: “Para você, Sóror Saudade, escrevo estas palavras tardias, as que prometi faz tanto e tanto, palavras agora tristes, incapazes de curar dores de amor ou surtos de insensatez. Infelizmente, não tenho nada de alegria para oferecer por lenitivo, pois a lâmina torpe que me acusa de ser é quem mais sofre quando rasga o coração de uma flor”.

sábado, 5 de junho de 2010

Embaixador do Brasil no além



Vi no O Mossoroense velho de guerra, com estes olhos que a ressaca há de comer, que o presidente Lula, com a devida chancela do Congresso Nacional, promoverá Vinicius de Moraes a ministro de primeira classe do Itamaraty. O cargo, diz O Globo, é o mais alto da carreira diplomática brasileira, honraria que, aqui para nós, torna-se um nada ante a obra que consagra e eterniza a figura do poeta.

Não se trata de homenagem post mortem, mas de autorreabilitação do governo. Lula conserta mais um erro do Regime Militar, que, embora morto e sepultado, ainda inspira a nação azul-bebê na Terra de Santa Luzia. Demitiram-no sumariamente do Ministério das Relações Exteriores, baseados no tenebroso AI-5. Saiu com uma mão na frente, outra atrás e arapongas a la Vuco-Vuco de todo lado.

A reabilitação – a do Estado, repito – ocorre 30 anos depois da partida do homem que passou por esta vida e viveu, que ousou lançar um “poema inocente sobre o rio venéreo engolindo as cidades” e que perguntava, na Hora Íntima: “Quem, bêbedo, chorará em voz alta/ De não me ter trazido nada?”. Tarde? Que é isso! Para um versejador que de manhã escurece e à noite arde, o tempo “é quando”.

Gostei do gesto e estou com Marcelo Dantas: “Quaisquer que sejam as motivações do atual governo em promover tão tardia redenção, o Brasil agradece”. Se o homenageado gostaria, aí são outras. Lembro-me, com receio de estar sendo vítima de uma sacanagem da memória, de haver lido que o poetinha pediu reintegração à carreira diplomática após a anistia e, assim que o reconduziram, demitiu-se.

Peraê! A redação foi invadida. Virgulino? Jararaca? Chico Preto? Virgem Santa! Túlio Ratto e Jacson Damasceno tangendo um “cachorro engarrafado” na Escócia. Querem festejar no Cidade Junina, apesar dos riscos de chover bala, os 12 anos desse animalzinho que Karl Leite enviou de Natal, bem como a nomeação de Vinicius de Moraes ao posto de embaixador do Brasil no além. Saravá!

sábado, 29 de maio de 2010

Para Natacha



Pretendia escrever sobre a moça de azul, aquela de azul na roupa, de azul nos olhos, de azul na cuca. O problema é que toda moça de azul tem namorado roxo, de ciúme, detalhe lastimável, mas convincente o bastante para mudar o rumo da prosa. Natacha, pelo menos, não deve me causar problemas, digo “não deve” porque, sinceramente, não a conheço, nem sei se ela existe e, se existe, se é nova, velha, alta, magra, feia, bonita.

Talvez esteja na casa dos “inta”, daí para frente, porque a indicação “P/ Natacha” escrita em grafite, com uma letra alta, magra, quase gótica, encontra-se abaixo de “Ao Leitor”, título do primeiro poema de As Flores do Mal, obra-prima de Baudelaire, e a edição a que me refiro é de 1985. Comprei-a faz seis anos, no Sebo Vermelho, por quinze reais ou “Quinze contos”, como diz Abimael Silva, proprietário do estabelecimento.

Para os que apreciam a análise do comportamento humano, construindo imagens acerca das pessoas, a partir de sinais aparentemente sem importância, os livros usados têm significado muito especial, porque neles estão as marcas, conscientes e inconscientes, feitas pelos antigos leitores. São grifos, anotações, rabiscos, dobraduras e até aquele aspecto amarelado que certas páginas adquirem, por serem mais frequentadas do que outras.

Assim encontrei Natacha. Além da dedicatória a ela, há uma assinatura ilegível, que se repete na folha de autógrafo e no sumário, o desenho de um bichinho esquisito, na página 449, e o destaque ao nome de Creso, rei da Lídia, cuja riqueza inspirou a frase “Tão rico quanto Creso”. O último proprietário também destaca os poemas “Epígrafe para um livro condenado”, na página 457, e “A Eugène Fromentin”, na página 565.

Não consigo definir o que se pretendia no tocante a Natacha, compará-la com a mensagem ou apenas avisá-la de que o pecado vicia, de que “... adoráveis remorsos sempre nos saciam”, de que “Impomos alto preço à infâmia confessada”, e de que “É o diabo que nos move e até nos manuseia!/ Em tudo o que repugna uma joia encontramos;/ Dia após dia, para o Inferno caminhamos,/ Sem medo algum, dentro da treva que nauseia”.

Há quem não se sinta provocado por coisas dessa natureza, mas eu, Escóssia da gema, trago a inquietação e a curiosidade destacadas na herança genética. Quem será Natacha? Ainda vive? Mora onde? Faz o quê? É flor do bem ou do mal? Veste-se de azul ou prefere verde, vermelho? Se alguém souber do paradeiro dela, da Natacha cuja memória habita o meu exemplar do livro de Baudelaire, por favor, avise-me com urgência.

sábado, 22 de maio de 2010

O “Veisales”



A missa de Santa Luzia lotou dois lados do alpendre da antiga sede da fazenda Canaã, em João Câmara. A parte de trás ficou reservada aos batismos, já que na lateral esquerda realizava-se a exposição de produtos cultivados por membros da comunidade.

O lugar que pertencia a Sales da Cunha, amigo de minha família há décadas, passou a ser chamado Projeto de Assentamento Santa Luzia III, a terra prometida de nordestinos que hoje sobrevivem trabalhando com suas famílias no próprio chão, graças à reforma agrária.

Desde 1986, sempre no terceiro domingo de dezembro, de modo a não coincidir com a festa de Mossoró, Sales promovia em Canaã a missa em homenagem à padroeira da visão, costume seguido pelos agricultores assentados ali.

Todo mundo em João Câmara, independentemente de partido político, gosta de Sales da Cunha, “Véi Sales” para os íntimos, e o considera vitorioso, um homem a quem Santa Luzia deu o privilégio de enxergar as coisas com os olhos da alma.

Alguém, cujo nome não me recordo, costumava dizer que, além de tudo, Sales é cabra de sorte, pois se elegeu vereador em Natal, presidente do Legislativo em João Câmara e recebeu a homenagem da Ford, que lançou um carro com o nome dele, o “Veisales”.

sábado, 15 de maio de 2010

O padre cangaceiro



Padre Longino era o cão chupando manga. Casava e batizava, fosse literalmente ou no sentido figurado da expressão. A ele, primeiro mossoroense ordenado pela Santa Madre Igreja, atribuem-se ações criminosas diversas, todas sem castigo. O rol dos delitos contempla investidas contra o patrimônio alheio, contra a dignidade sexual e contra a vida.

Há poucos registros sobre o sacerdote. Em 1949, Vingt-un Rosado publicou anotações de Francisco Fausto de Souza sobre o religioso, assumindo, porém, a responsabilidade pela impressão da brochura, ante ameaças de retaliação. A edição de 40 volumes recebeu o título Apontamentos históricos sobre o Padre Longino Guilherme de Melo, 1802-1878.

Sabe-se que nasceu no arraial de Santa Luzia do Mossoró aos 15 de março de 1802, filho do capitão Simão Guilherme de Melo e de Inácia Maria da Paixão, pessoas ordeiras e respeitadas. Recebeu ordens no seminário de Olinda-PE, em novembro de 1826, voltando logo a seguir para a terra natal, onde só não fez chover, mas ainda preparou o tempo.

No início da década de 1950, contratado pela prefeitura para fazer Notas e Documentos para a História de Mossoró, Luís da Câmara Cascudo ampliou os estudos de Fausto. O primeiro indivíduo, no entanto, a escrever sobre Longino foi outro ministro católico, José Antônio Silveira, inimigo implacável do colega de batina a quem dedicou versos ferozes.

O “poeta improvisado” acusa o desafeto de quebrar o celibato em pleno confessionário, deflorar menores impúberes, entre as quais uma sobrinha, celebrar missas para o diabo na capela de Santa Luzia, badernas, porte de arma, tentativas de homicídio e assassinatos consumados. A casa paroquial e o próprio templo serviram de trincheiras em tiroteios.

O maior deles envolveu Longino e seus cabras contra a capangaria liderada por Antonio Basílio, tocador de viola e baderneiro das bandas do Assú, além de genro do comandante Félix Antonio de Sousa Machado, descendente dos fundadores de Mossoró. Na chuva de bala, morreu um dos asseclas do padre, o célebre pistoleiro Tempestade Ventania.

Os dois se tornaram desafetos após casamento celebrado por Longino. A briga envolveu de início o vigário e Pedro Ferreira. Basílio saiu em defesa de Pedro, ameaçando Longino com uma arma branca, que lhe foi tomada por circunstantes. Irritado, o ministro de Deus arrastou outra faca, desferindo seis golpes no adversário. Ambos estavam bêbedos.

Transportada para a sede do município numa rede, após exame de corpo de delito realizado in loco pelo juiz de paz Domingos da Costa Oliveira, na presença de testemunhas convocadas para o ato, a vítima sobreviveu e fugiu. Não está claro se chegou a cumprir a pena de um mês de prisão sumariamente estipulada pelo crime de “porte ilegal de arma”.

O acusado recebeu o benefício do livramento ordinário no mesmo documento que determinava sua prisão e nunca foi julgado. Anos depois, o corregedor Luís Gonzaga de Brito Guerra declarou a prescrição do crime. A Igreja suspendeu as ordens de Longino, mas, seis anos depois, a pena acabou revogada pelo bispo Dom João Marques Perdigão.

Aconselhado a deixar a cidade, viveu no Piauí e no Maranhão. Voltou para Mossoró 28 anos depois, cansado e cego. Quando alguém perguntava sobre a deficiência visual, respondia: “É verdade, ceguei. Ceguei de ver gente ruim”. Morreu aos 30 de março de 1876, contando 74 anos de idade, e teve o corpo sepultado na capela do Cemitério Velho.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Licença para o caos



Os adultos subestimam as lições dos contos de fada, das fábulas, dos apólogos e dos desenhos animados e, por isso, não percebem as mensagens contidas em parte dessas histórias capazes de influenciar, no universo das crianças, os homens e mulheres do futuro.

Lógico, existem influências boas e ruins, mas, embora estas inspirem maior vigilância, concentro-me nas coisas edificantes. A referência ao lixo serve apenas para não pensarem que o desconheço e abarrotem minha caixa de correio eletrônico com mensagens de protesto.

Na literatura, um dos melhores é o exemplo do fabulista Esopo, escravo grego que ganhou dinheiro e comprou a própria liberdade, no século cinco, antes de Cristo, contando histórias infantis repletas de ensinamentos valiosos ainda ocultos às vistas dos desavisados.

Das fábulas de Esopo surgiram lições de moral repetidas até hoje, como “Nem sempre bela embalagem anuncia belo recheio”, “De vagar e sempre se chega na frente”, “Inventar é uma coisa, fazer é outra” e “Quem quer agradar todo mundo no fim não agrada ninguém”.

O poeta João de La Fontaine, francês do século XVII, também buscou nessas historietas o escudo metafórico para desenvolver contos moralistas. La Fontaine reescreveu textos atribuídos a Esopo, entre eles “A cigarra e a formiga” e “A rã que queria ser grande como o boi”.

Monteiro Lobato, outro mestre da área, também recriou Esopo, dando desfecho diferente a certas narrativas. No caso de “A cigarra e a formiga”, Lobato troca a conclusão original, onde a cigarra morre desprezada, por um fim em que a formiga acolhe e alimenta o inseto cantor.

Não podemos nos esquecer de Machado de Assis, embora ele não escrevesse fábulas, e sim apólogos, ou pelo menos um, a “A agulha e a linha”, por meio do qual o mestre da literatura brasileira demonstra que, aqui e acolá, a gente serve “de agulha a muita linha ordinária”.

Na fábula, animais protagonizam a ficção; no apólogo, os papéis são atribuídos a objetos inanimados. Por falar nisto, semana passada tive o prazer de assistir a um belíssimo apólogo na TV, uma ilha no meio do lixo que as emissoras empurram goela abaixo de nossas crianças.

Trata-se da história do traço que descobre a possibilidade de ser qualquer forma. Contudo, livre para desenhar o seu destino, ele se transforma num emaranhado sem significação e sofre bastante até descobrir, com os próprios erros, que “a liberdade não é uma licença para o caos”.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

“Vinde a mim as criancinhas”



Nada desde a Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero, no século XVI, abalou tanto a Igreja Católica quanto as denúncias de pedofilia que pipocam mundo a fora, envolvendo padres, monsenhores e bispos. Até o papa Ratzinger, do alto de sua santidade, entrou no tirinete, acusado de proteger sacerdotes envolvidos em abuso de crianças.

A Santa Madre vem perdendo fiéis em massa, enquanto outros segmentos do cristianismo ampliam seus rebanhos. Na Alemanha, a dispersão é descrita como algo “dramático”. Cerca de 1.400 indivíduos deixam o catolicismo, por mês, somente no Estado Livre da Baviera, cuja capital é Munique, indignados com aquilo o que chamam “traição do clero”.

Os dados estão no jornal Frankfurter Rundschau e nos foram repassados via Twitter pelo mossoroense Max Rodrigues, morador de Düsseldorf. A canção do momento, diz ele, é “Losing my religion”, algo como “Perdendo minha religião”, do grupo americano R.E.M., musiquinha de dor de cotovelo, realmente adequada à ressaca moral dos ex-devotos.

A Universal do Reino de Deus é quem mais fatura no Brasil, com apoio dos veículos integrantes da Rede Record, presentes em vários países. Bispo Edir Macedo, o contínuo da Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) que virou milionário, dono de igreja e magnata das comunicações, é fera no marketing religioso e bate sem dó nos adversários.

A estratégia dos líderes apostólicos romanos, ao revés, é péssima. Pedir desculpas esfarrapadas não alivia a dor das vítimas, não lhes atenua os traumas, a vergonha, a revolta. A pedofilia é tão grave quanto as monstruosidades da Inquisição, o antissemitismo e a evangelização forçada de povos dominados, violações reconhecidas por João Paulo II.

Sabe-se que os criminosos de batina estão em minoria, a não ser em Arapiraca-AL, onde todos desvirtuavam o “Vinde a mim as criancinhas”. Ocorre, no entanto, que essa minoria é bem distribuída e muito empenhada em descarregar suas perversões, com potencial para produzir sérios estragos à honra dos padres de fé em Deus e vergonha na cara.

sábado, 24 de abril de 2010

Os elefantes verdes de Pirá



Trazia em minhas lembranças a certeza de que Pirá morrera de morte matada, vítima de latrocínio, mas o poeta Francisco Nolasco, no livro Grãos de Areia, afirma que isso não procede. Segundo ele, o “mecânico pinguceiro” de Tibau “morreu com problemas advindos do álcool”. Nolasco deve estar certo, pois conhecia bem o falecido, a ponto de saber o nome dele por completo, coisa que pouca gente sabe. Valdir Campos de Jesus era a graça dessa figura interessante, cujo tira-gosto preferido, durante as cachaçadas no bar de Seu Manoel Moreira, era papel de embrulho.

Raras vezes encontrei Pirá de Jesus em estado de sobriedade. Na maior parte do tempo, o sujeito estava movido pelos vapores do álcool. Numa fase avançada do alcoolismo, dizia ver elefantes verdes saindo do mar, nas imediações da Pedra do Ceará. “Não ando mais praqueles lados, de jeito nenhum, porque estou morrendo de medo dos elefantes”, contou ele no alpendre da casa de meu avô, para espanto da meninada que, mesmo conhecendo histórias ainda mais fantásticas, como as aventuras de Tidó e de Ananias, não deixava de se encantar com novas assombrações do universo tibauense.

Sempre que avisto a Pedra do Ceará ou a ela faço referência, lembro-me da história dos paquidermes, tão verdadeiros quanto as eternas naus dos sonhos vindas de Oropa, França e Bahia. Meus filhos sabem-na de cor e salteado. Há quem pergunte: “E por que os elefantes eram verdes?” O detalhe de eles emergirem das águas rasas de Tibau tornou-se secundário. O fato é que os bichos poderiam aparecer em todas as cores do mundo nas viagens psicodélicas de Pirá, porque no surrealismo das alucinações e dos sonhos, os elementos se misturam livremente sem rogar ou sugerir explicações.

Não há nada estranho no fato de alguém ver elefantes verdes saindo do mar. Vez por outra, no Rio Grande do Norte, alguém inebriado por falsas perspectivas de poder e glória surge de braços dados com a mosca azul. É normal, pode acontecer em todas as partes e com qualquer pessoa que tenha na mente uma razoável tendência à megalomania, a exemplo da bruxa Mambi, que em “O Regresso ao Mundo Mágico de Oz” pretende destruir a cidade dos ladrilhos amarelos com uma manada infernal de elefantes verdes, primos legítimos das moscas azuis dos pretensos donos do mundo.

Os elefantes verdes de Pirá nada tinham com os de Mambi nem muito menos eram parentes das moscas azuis. Na hora em que deixavam o reino das águas, faziam-no a passos lentos, com barritos alegres que, embora altos, apenas o mecânico bêbado percebia nas noites silenciosas de Tibau, ainda livres da parafernália sonora dos carros que hoje disputam o controle do Centro. Os elefantes de Pirá não agrediam nem alimentavam vaidades sinistras, queriam simplesmente fazer parte daquele mundo imaginário, tanto é que, depois da morte do amigo, eles nunca mais apareceram a ninguém.

sábado, 3 de abril de 2010

As maravilhas da casca da ameixeira



Sábado é dia de jogar conversa fora nos sebos de Natal, de preferência degustando cachaça de cabeça, numa espécie de preparação para a meladinha do Bar do Nasi e outras iguarias do Beco da Lama.

Os sebos natalenses, além do engasga-gato para clientes especiais e do prazer da compra de livros velhos empoeirados, possibilita o encontro com figuras variadas, inclusive com eloquentes filósofos populares.

Conversa-se de tudo nesse espaço, desde as bobagens da política local, ilustrada por rachas e traições, a assuntos sérios, como a arte de se dar nó em pingo d'água para se fazer cultura no Rio Grande do Norte.

Num desses sábados, lá estava eu, vasculhando as estantes do Sebo da Praça, em busca de novidades na seção de literatura brasileira, enquanto ouvia dois homens conversarem sobre as maravilhas da casca da ameixeira.

- Como vai seu filho. Ele ficou bom daquela cirurgia que não cicatrizava?

- Ficou, mas não pelas mãos dos médicos. Foi a casca da ameixa - santo remédio! - quem devolveu a saúde do menino.

- E como isso funciona?

- Bom, você precisa tirar a casca do pau vivo, colocar de molho e, depois, ficar lavando a ferida com a água.

- Certeza de que esse negócio dá certo, sem antibiótico, sem nada?

- O quê, meu amigo, a água da casca da ameixa é tão forte, mas tão forte, que se você lavar a vagina de uma virgem, ela lacra na hora.

Foi aí que outro frequentador do sebo, em silêncio até então, largou o livro que estava lendo para intervir na conversa:

- Pelo amor de Deus, fale baixo, pois se as raparigas das Rocas descobrem isso, vão cobrar mais caro dizendo que são donzelas.

sábado, 27 de março de 2010

A mulher do próximo



Perdoai-me, Senhor, pois eu pequei. Mas também, não cobiçar a mulher do próximo, mesmo correndo riscos, já que o próximo estava realmente próximo, seria impossível a qualquer homem que se deparasse com a dama a quem meus sentidos despiram.

Além da penumbra do ambiente sob a lua-nova, a taça de vinho tinto seco e a brisa marinha, vieram aquela boca devassa e aqueles olhos malditos desafiar a insônia dos seiscentos diabos que me devora a cada domingo. Se foi uma provação, convenhamos, exagerastes na dose.

Felizes os homens que conseguem dormir aos domingos, sem precisar sair por aí, tomando uns goles para entorpecer o juízo, atrapalhando a sinfonia das corujas, ouvindo o lamento dos desgraçados, desfiando sozinho o seu próprio rosário de desejos.

Desejos que nem sempre são puros, desejos de trair o paladar misturando cachaça com coca-cola e de se apaixonar louca e alucinadamente por mulheres sem nome, cujos rostos serão esquecidos ao cair do primeiro raio de Sol, na hora de voltar para casa.

Bem-aventurados os que não se esquecem da noite passada nem perdem beijos na neblina. Malditos os que desprezam as conquistas, desgraçada aquela noite, desgraçada aquela mulher que se foi sem legitimar o meu pecado para morrer no esquecimento.

sábado, 20 de março de 2010

Dia de São José



O coração do homem do campo inunda-se de esperança porque choveu no Dia de São José, indício de fartura à mesa nordestina. Para os técnicos, coincidência que não garante regularidade pluviométrica. O inverno será marcado por precipitações esparsas, dizem a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) e outras instituições, entre as quais, a Ufersa.

A editora-chefe Ana Paula Cadengue Ratto prefere o romantismo das profecias populares. Chegou feliz à redação depois de ver um relâmpago cortar a tarde nublada. O repórter fotográfico Luciano Lellys, capataz de fazenda nas horas vagas, fez a festa dos nossos olhos com imagens captadas durante a chuva, quase aquele céu com nuvens de mil megatons descrito por Raul Seixas.

A propósito, Karl Mesquita Leite, embaixador do Beco da Lama e do Bar do Ku, esteve na cidade e me trouxe o Guia do Observador de Nuvens, livro de Gavin Pretor-Pinney, fundador da The Cloud Appreciation Society.O trabalho enfatiza as nuvens como "rosto da atmosfera", às vezes no patamar das "obras de arte", que, adequadamente analisadas,antecipam os humores climáticos.

Aquelas das fotos de Luciano, prenhes de água, dão notícia de feijão e milho verde, de pamonha e canjica, de coalhada, de jetirana florando a caatinga, de riacho correndo lembram-me a euforia de meu avô, que, apesar dos avançados problemas na visão, traduzia a nuvem, o raio, o trovão, a saúva a partir dos relatos dos amigos e graças ao conhecimento dos segredos do sertão.

Terra seca é bonita na literatura, nos versos de Patativa, nos cordéis de Antônio Francisco, na poesia enxuta de João Cabral de Melo Neto. Melhor quando chove sobre a dura realidade das famílias rurais. Tomara, então, que prevaleçam os sinais consagrados pelo senso comum, com todo respeito aos prognósticos científicos, e se derramem sobre nós as graças do inverno de São José.

sábado, 13 de março de 2010

O túmulo d'O Ébrio



Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo
(O Ébrio – Vicente Celestino)


Influência de minha avó materna, das músicas que ela cantava para os netos dormirem? Talvez. O certo é que, aos 11, 12 anos, eu já era fã de canções antigas, incluindo algumas descobertas por conta própria. O Ébrio e Coração Materno, de Vicente Celestino, entre as tantas. Assisti até ao filme inspirado na primeira dessas, e de mesmo nome, na tela no Cine-Teatro Pax. Década de 1980.

De certo, reapresentação, pois o “Balaio Porreta”, do poeta porreta Moacy Cirne (http://balaiovermelho.blogspot.com), informa-nos de sua exibição no Pax de Caicó, por volta de 1950. “No final, todos, absolutamente todos, inclusive os homens, choravam copiosamente diante do dramalhão”, comenta o vate seridoense, lembrando-me de que despejei lágrimas com metro e meio cada.

Não por acaso escrevo sobre “A Voz Orgulho do Brasil”. Acabo de ler no site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a notícia de que o viúvo da viúva de Vicente Celestino moveu ação contra a Santa Casa de Misericórdia, pleiteando titularidade do direito de “uso” do túmulo do cantor, no Cemitério São João Batista, no Botafogo. A Santa Casa, agora sei, administra os fossários cariocas.

Que nome feio da moléstia! Fossário? Figa! Deixa para lá, como diz minha amiga Melissa Hoffmann, o fato é que o cidadão José Alves Pinto, segundo marido da cantora, atriz, cineasta e escritora Gilda de Abreu Celestino, pretende, segundo parentes dela, despejar os restos mortais do tenor. Justificativa: ser legatário dos bens deixados pela esposa, que o nomeou herdeiro universal.

O juiz Rafael Estrela Nóbrega, da 30ª Vara Cível, a quem coube o julgamento do caso em primeira instância, frustrou a pretensão com argumentos simples: Alves Pinto não é da família Celestino, jazigo é bem afetado, de uso especial, e aquele em litígio, para piorar, ficou de fora do testamento da falecida. O dito-cujo – eu mencionei “dito-cujo” e não de cujus – pode recorrer da sentença.

A assessoria de imprensa da corte fluminense destaca depoimentos de parentes de Gilda, conforme os quais o viúvo pretende transferir a sepultura para terceiros, livrando-se dos restos mortais ali em repouso, algo que haveria tentado de outras maneiras. E olha que a campa onde os ébrios loucos depositam “segredos” e “lágrimas de dor” é das mais visitadas no Cemitério São João Batista.

O assunto me lembra uma tia, de saudosa memória, da qual peço licença para manter o nome em segredo. Precavida e querendo poupar os filhos desta dolorosa tarefa, ela adquiriu lote para si e para o marido no São Sebastião, nosso Cemitério Velho, muito antes de morrer. Escolheu lugar estratégico, de fácil acesso e à sombra de árvore frondosa, por ser menos abafado e claustrofóbico.

Certa feita, por erro do serviço funerário, enterraram o corpo de um estranho justo naquele canto. Confusão braba. A tia exigiu a transferência do cadáver. O município intentou demovê-la, oferecendo área diversa, maior até, se lhe aprouvesse. O contra-argumento, contudo, encerrou a briga: “Meu filho, sou uma mulher asmática e vou morrer sem fôlego se for enterrada no sol”.

P.S.: caía o ponto final ao pôr-do-sol quando o advogado José Wellington Diógenes chegou à redação. “Escrevendo? Sobre o quê?”, perguntou-me, aboletando-se incontinente diante do computador, sem esperar resposta. Leu, mostrou os cabelos do braço arrepiados e fez a observação que faltava: “E pensar que Vicente Celestino compôs o Ébrio, mas não bebia nem levou chifre”.

sábado, 6 de março de 2010

Leitura Dinâmica



“Todo o homem que lê de mais
e usa o cérebro de menos
adquire a preguiça de pensar”.
Albert Einstein


O cara é o cara, tem até nome de espião britânico. Lê página de livro em segundos, franzindo queixo e testa, balançando a cabeça em sinal afirmativo, como fazem intelectuais frente ao mistério da palavra. Em seguida, explana item por item, aparenta profundidade sem sair da superfície do texto. A plateia, antes ateia, rende-se aos milagres provenientes do troço chamado leitura dinâmica. E aplaude.

As palmas, os “Oh!”, os “Ixe!”, os olhos arregalados, a curiosidade ampla, geral irrestrita, nada o comove. Ele prossegue sem perder o ar solene dos homens de negócio, oferecendo-se para ensinar sua técnica. Em apenas três horas e a módicos tostões, promete, qualquer pessoa aprende a ler naquela velocidade, com aquela capacidade de memorização, sem cansaço, sem dor nos olhos, sem... sem... sem!

Sem prazer. A leitura dinâmica é inimiga da perfeição, assassina dos detalhes, irmã gêmea da ejaculação precoce. Visualize o sujeito percorrendo num estalar de dedos as catorze linhas de “Amar!” ou de “A minha tragédia”, sonetos de Florbela Espanca. Imagine o indivíduo, o mesmo talvez, saindo com a rainha da bateria da Grande Rio e gozando no aperto de mão. O apressado às vezes nem come.

Isso lembra o filme “Click”, do diretor Frank Coraci, no qual o arquiteto Michael Newman, interpretado por Adam Sandler, recebe um controle remoto universal munido de possibilidades fantásticas. O acessório, além das funções convencionais relacionadas aos aparelhos de TV e DVD, controla o fluxo temporal no presente e no futuro, só não remete ao passado, sempre inatingível e irremediável.

A personagem se deixa levar por aparentes facilidades da engenhoca, especialmente as do botão fast-forward, o qual aciona a cada discussão doméstica, a cada chateação no trabalho, a cada problema de saúde. De tanto avançar, Michael deixa de viver também momentos agradáveis e, digamos, necessários. Quando se dá por isso, os instantes desperdiçados, Inês é morte e ele está com o pé na cova.

Boa metáfora. Quem atravessa o texto na carreira deixa as entrelinhas em branca nuvem, abre mão da boa companhia, do privilégio de sentir a alma do verbo, de viajar nos sentidos. Não sente cansaço, dor de cabeça, coceira nas vistas, não tem olheiras. Quem aciona o fast-forward chega primeiro, mas abre mão da experiência, adquirindo conhecimentos tão profundos quanto um pires emborcado.

Ledores dinâmicos que tropeçaram na epígrafe e caíram aqui, perdidos, desnorteados, sei lá, devem estar resmungando: “Vote, cruz credo, vade retro, queima!”. Relevem aí, por favor, a deselegância do velho cronista, saudoso de quando as horas engatinhavam no ritmo das teclas da Olivetti, viciado em hábitos antiquados, como o de perder eras preciosas, chafurdando nas entranhas de bons livros.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Poesia e música



Em Vinicius de Moraes, poesia é irmã de samba, ambos feitos das “lágrimas do tempo e da cal do meu dia”. Simbiose perfeita, relação sem culpas. Fagner fez bem aos Motivos, de Cecília Meireles, entoando “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste: sou poeta!”


O grande João Cabral de Melo Neto dizia não possuir gosto pela música, com exceção do frevo pernambucano e do flamenco. O som dos versos, segundo ele, tem “dicção diferente, que não é cantável”. Musicar um poema, afirmava, só aumenta a propagação da escrita, a sua divulgação, sem acréscimos às ideias.


Com Morte e Vida Severina, a coisa é diferente, apesar das dificuldades declaradas por Chico Buarque de Holanda. A obra cabralina, feita igual “pedra de nascença” que “estranha a alma”, ganhou dimensão lírica na melodia. “Essa cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a cota menor/ que tiraste em vida...”.


Tenho três experiências, todas positivas. Genildo Costa, aquele que faz os bares de Grossos se abrirem sorrindo, pegou um poema livre e um soneto cometidos por mim, sem qualquer valor literário, e os transformou. O Sertanejo, título daquele, Dores e Amores, o deste, ganharam imagens que não tinham.


Agora vem outro Costa, o Paulo, sobrinho de Tico da Costa, que não é parente de Genildo Costa, e faz a surpresa: música para Eu de Manhã. O poemeto desengonçado, escrito numa noite em que me achava insuportavelmente amanhecido, ficou parecendo poesia verdadeira. Milagre de Paulo. De São Paulo!


Agradeço a generosidade, reconhecendo o desafio enfrentado na árdua tarefa de juntar palavras do lixo e as transformar em arte, por suas vozes e instrumentos. Sou péssimo poeta, mas ser péssimo poeta é melhor do que ser nada, especialmente se existem amigos capazes de remediar nossa ausência de talento.


Para ouvir, acione o link Eu de Manhã - Cid Augusto/Paulo Costa

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Hino ao amor



Tanto o original francês “Hymne à l’amour”, de Marguerite Monot e Édith Piaf, quanto a versão brasileira “Hino ao Amor”, de Odair Marzano, imortalizada por Maysa e Altemar Dutra, responde àquela pergunta feita pelo padre aos nubentes: “Promete ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-lhe e respeitando-lhe até que a morte os separe?”.

O espírito ultrarromântico da composição, com mais erres depois da reforma ortográfica, destoa, no entanto, do pragmatismo do legislador tupiniquim, especialmente a partir da segunda metade do século XX. O Código Civil, não obstante os deveres do art. 1.566, entre eles fidelidade recíproca e mútua assistência, abandonou a utopia da eternidade matrimonial.

Depois de tornar possível o divórcio cartorial, inexistindo filhos menores de idade e guerra pela divisão dos bens, e à véspera do divórcio pela Internet, o Direito de Família deixou de caminhar no compasso do “Hino ao Amor”, com os belos versos: “Quando enfim a vida terminar/ E de um sonho nada mais restar/ Num milagre supremo/ Deus fará no céu eu te encontrar”.

A lírica do Livro IV da lei civil é o “Soneto de Fidelidade”, de Vinicius de Moraes, com parâmetro contrário à fantasia dos amores eternos. Ao proclamar “Que não seja imortal posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”, o poetinha, com seus nove casamentos, alerta para o fato de que o amor pode morrer, igual à dor tão velha do samba de Chico Buarque.

Sepultado o amor, da matéria orgânica em que seu corpo de luz se transforma, nutrem-se problemas. Aí, em lugar do “Não importa os amigos,/ risos, crenças e castigos,/ Quero apenas te adorar!”, muitas vezes entram em cena, no palco do Direito de Família, ante testemunhas, advogados, promotores e juízes, inimigos sonhando ver um ao outro no quinto dos infernos.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Fogo amigo pela culatra



O clima é péssimo entre os grupos da senadora Rosalba Ciarlini Rosado e da prefeita Maria de Fátima Rosado Nogueira, especialmente após os acontecimentos da última semana. Todos sabem, os chefes azuis dos amarelinhos detonaram a rosa vermelha, acusando-a de patrocinar insultos à correligionária dengocrática, com recursos do Senado Federal.

No meio da polêmica, o jornalista Carlos Santos, dono da Herzog Comunicação e Assessoria LTDA, bem assim autor da Coluna do Herzog, hospedada no endereço www.blogdocarlossantos.com.br. Ele, segundo assessores palacianos, recebe dois mil contos mensais da senadora para ofender a burgomestra e, de lambuja, familiares dela e secretários municipais.

A estratégia, cá pra nós, é um desastre do ponto de vista político, podendo representar a morte súbita dos smurfs, já a partir do resultado das eleições deste ano. O líder de traquejo, de bom-senso, entrosado no ramo, vai direto ao ponto, sem intermediários, sem ofensivas públicas, consciente de que, havendo excesso de pólvora, o fogo amigo sai pela culatra.

A esquadrilha azul, ordenada por expoentes fafazistas, tem outro raciocínio e segue ministrando remédio amargo garganta abaixo daquela que os colocou e os reconduziu ao poder. Embora o marido da prefeita seja médico e ela enfermeira, ambos renomados, ninguém se ateve a consultar a bula do medicamento para se informar acerca de efeitos colaterais.

O primeiro deles é a tripla resposta de Rosalba: 1 – sabe quem está por trás das dúvidas lançadas sobre o uso da verba indenizatória de seu gabinete no Senado Federal, 2 – não dá a mínima para os ataques e 3 – perde o apoio da criatura, mesmo sofrendo a tristeza inerente ao criador traído, e não suspende de jeito maneira o contrato com Carlos Santos.

O segundo é o desgaste da nossa imagem. A veiculação de desaforos, com o incremento – ou seria excremento? – de frases injuriantes e palavrões intranscritíveis, numa explosão de ódio por encomenda, ofende a inteligência do leitor e depõe contra toda a seara midiática. Agressões travestidas de jornalismo não condizem com a história libertária de Mossoró.

Não sou corporativista nem palmatória de seu ninguém, até porque o errado talvez seja eu. Defendo a postura crítica da sociedade frente aos jornalistas e destes em relação à própria categoria, mas com maturidade para manter os pés nas estribeiras e coragem para assumir vínculos de amizade e parentesco, simpatias pessoais e conjunturas econômicas.

Antes de me despedir dos que sobreviveram aos parágrafos anteriores, chamo atenção para o elemento de maior gravidade na peleja entre a “perfeita” e a dona do céu. Refiro-me, entristecido, à perseguição despudorada dos governantes citadinos a veículos de comunicação e trabalhadores do ramo que não rezam pela cartilha de Papai e Mamãe Smurf.

Somem-se aos ataques a Carlos Santos, objetivando atingir a Rosa de Ravengar, episódios de arapongagem e falsificação de provas. Lembremo-nos das ofensas ao repórter Bruno Barreto, a tentativa de fechamento de nosso único canal de TV aberta, no estilo Hugo Chávez, e a pressão para afastar os anunciantes da revista “Papangu”, de Túlio Ratto.

Desde junho de 2007, a prefeitura não anuncia no “O Mossoroense”, jornal mais antigo e mais lido da região, nem na “FM-93”, líder de audiência há duas décadas. Além disso, recusa-se a honrar dívida contraída anteriormente ao boicote, na vã esperança de inviabilizar as empresas integrantes da Rede Resistência, que sobrevivem sem favores oficiais.

Bom, preciso sair para tomar cana com tira-gosto de romã na mansão intergalática de Laércio Eugênio, ouvindo vinis de Chico Buarque, Pink Floyd e Bartô Galeno, mistura típica do Carnaval dos doidos por sossego. E se Affonso Romano acertou ao dizer que Momo dilui a rebeldia, o pastoril ensaiará quarta-feira, espalhando as cinzas do arranca-rabo.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

“Pogréssio, pogréssio!”



“Mossoró cresceu, só não vê quem não quer”, diz o velho “silogan” com o qual, meio constrangido pela cegueira de até anteontem, passo a concordar sem pedir reservas. Mudei, todos mudam, nada errado em mudar, em ser tanto quanto Raul Seixas, a metamorfose sobrepondo-se às opiniões formadas sobre tudo, inclusive aquilo que os Demônios da Garoa chamam “pogréssio”.

O causador dessa mudança radical é um panfleto. Isso, um volantezinho de papel cuchê no qual, sobre as metades verticalmente divididas por lençóis, vermelho o da esquerda, preto o da direita, estão duas senhoritas trajadas de lingerie. São garotas de propaganda ilustrando o anúncio da reinauguração da firma cujo nome o departamento comercial me proíbe mencionar.

Recebi-o ali, no Centro, esquina do Pax, a exemplo de muitos transeuntes. George Lumier, ao dar feições arquitetônicas ao cinema construído em primórdios dos anos 1940, certamente não imaginava a que ponto a cidade evoluiria nas décadas posteriores à exibição do clássico americano “Formosa Bandida”, faroeste de Irving Cummings, com Gene Tierney e Randolph Scott.

O “pogréssio” dos lugares se mede pela diversidade dos empreendimentos, sejam nativos ou extraterrenos, novos ou restaurados, industriais ou comerciais. Liberdade para criar mecanismos de elevação do próprio negócio ou do negócio alheio é coisa de metrópole. Nossa terra, acelerada, vive clima desvairado de pauliceia e se afirma na condição de polo-desenvolvimentista.

Os enredos são distintos, mas as formosas bandidas do panfleto, estimulantes naturais do crescimento, lembram anúncios vistos em Londres, Paris, Berlim, Nova Iorque. Coisa de primeiro mundo, eu quis dizer, revelando no município interiorano o espírito da metrópole. Estarei presente na cerimônia de reabertura da empresa. E entusiasmado, pois agora vejo tudo em Mossoró.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Peia, la ursa!



Todo ano, entre janeiro e fevereiro, os ursos saem das tocas e invadem a periferia de Mossoró.

Os bairros ditos nobres há muito baniram de suas ruas essa tradição cuja origem possível, segundo me ensinou mestre Deífilo Gurgel, está nos ciganos europeus que adestravam ursídeos e os fazia dançar em lugares públicos, em troca de dinheiro. Bastava o comando “Dança, la ursa!” para os bichinhos caírem no frevo.

Quando o Rabo da Gata nem sonhava ser Nova Betânia, o bum-bum-baticumbum-burum-bum-bum anunciava a passagem das trupes na busca dos incentivos culturais necessários ao porre do dia.

Muita gente entrava em desespero. Crianças e até adultos pelavam-se de medo daquelas figuras cobertas de estopas, mas quem enfrentava as feras, posso garantir, divertia-se bastante - nem que fosse à custa dos fujões.

Na última segunda-feira, tomando um cafezinho coado no pano por dona Teresinha, sogra de Hédimo Jales, na companhia desse cidadão conhecido como Capitão Caverna e do professor Odaci Fernandes, aprendi que ursos também entram em pânico, pelo menos os do subgênero chifranossomo corneae.

Verdade, garante o Capitão, “ur sujeito” cobriu-se de farrapos, mascarou-se, juntou gente no percurso e rumou à casa da ex-mulher que supostamente o havia traído.

No caminho, alguém percebeu as pontas da vingança latejando na cabeça do animal e o denunciou.

A turma, quase cúmplice involuntária de assassinato, revoltou-se. Foi cacete em banda de lata. Era o filho de Judas correndo, pulando, gemendo, e a galera gritando “Peia, la ursa! Peia, la ursa...”.

O sujeito sobreviveu - registre-se para alívio dos folcloristas - e ainda brilhará em compêndios culturais por revelar ao mundo a lenda do urso chifrudo.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Areias coloridas



A garrafinha de areia colorida custou-me R$ 6,00. Preço singelo para uma obra de rara beleza. A casinha, o coqueiral, as dunas, o céu, o mar. O artista anônimo merece todos os elogios.

Meninos, eu e meus amigos saíamos pelos morros - o morrinho, o das sete cores, o labirinto - com palitos de coqueiro e vidros vazios de bebida ou tempero. Era o maior barato fazer ondinhas com terras vermelhas, amarelas, azuis, róseas, sempre ornadas com estactites.

Ah, o preto, o prata e um verde escuro conseguíamos à beira mar.

Desenho nenhum, que ninguém do grupo nasceu com o necessário talento. Mesmo assim, vendíamos o produto de nosso artesanato aos tios, revertendo o lucro em picolé e insumos para construção de pipas.

Nem sei onde os artesãos contemporâneos adquirem matéria-prima. Há anos, ouvi de Josefina, inventora dessa arte, que ainda era possível extrair tais insumos em quintais de casas construídas nos morros outrora livres, imponentes, hoje domados e humilhados pela civilização.

Tibau perdeu o matiz, roubaram-lhe sem dó nem piedade. O colorido que se envazilha para deleite de visitantes e saudosistas deve ser na maioria fabricado.

Bons tempos que a devastação arrancou dos nossos filhos e sobre os quais os nossos netos lerão com certa desconfiança.

Leitora indignada



"A ‘farofa’ de Lula”, comentário publicado em Notas da Redação na última quarta-feira, vem dando o que falar. O texto aposto à fotografia na qual o presidente da República aparece transportando um isopor na cabeça, no litoral da Bahia, é alvo de rusgas e elogios. Elda Alves, por exemplo, escreveu de São Paulo à direção do jornal criticando a coluna que, segundo ela, além de grosseira com os senadores Arthur Virgílio (PSDB/AM) e José Agripino Maia (DEM/RN), tratou os leitores como ignorantes, especialmente ao dizer que o gesto do Filho do Brasil denota humildade. Fazer-se de farofeiro na praia, afirma a missivista, não é prova de modéstia, especialmente se nos lembramos de que no último encontro do G-20, na Inglaterra, enquanto Barack Obama hospedou-se na embaixada do seu país, Lula optou pelo Rayd Park Hotel, o mais caro da Grã-Bretanha. Elda declara, por fim, que o redator deve pensar antes de escrever absurdos, pois há vida inteligente do outro lado do balcão. Discordo em parte, porque considero Lula um homem simples, mas também não entendo o que diabos o isopor tem a ver com isso nem a necessidade da referência a Virgílio e Agripino. Importante, contudo, é o debate.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Questão de lógica



A Casa de Saúde Dix-sept Rosado e a Maternidade Almeida Castro não podem receber pacientes sequer com suspeita de contágio pelo vírus H1N1. A lógica é simples: além dos renais crônicos e dos pacientes da cirurgia cardíaca, o complexo hospitalar atende cerca de 100 grávidas por dia, que chegam a fim de dar à luz ou fazer pré-natal. Para completar, sem esquecer as crianças do berçário e da UTI neonatal, algumas daquelas mulheres, oriundas de vários municípios potiguares, do Ceará e da Paraíba, enfrentam gestações de alto risco. Em todos os casos, a gripe A pode ser fatal. Laudos médicos afastando o perigo de transmissão devem ser vistos com muita cautela, pois os esforços da ciência ainda não decifraram a complexidade da doença. Interessante, portanto, advogados de pessoas infectadas por esse monstro apelidado de gripe suína refletirem antes de pleitear amparo jurisdicional objetivando interná-las em lugares impróprios, expondo centenas de seres humanos a risco de morte. Mais importante ainda é o magistrado, frente a situações semelhantes, ouvir as ponderações controversas antes de prolatar sua decisão, mesmo que as evidências técnicas lhe pareçam irrefutáveis.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Viagra em promoção



O jornalista Carlos Heitor Cony escreveu na “Folha de São Paulo”, em meados de 2003, que seria “superdotado, com um equipamento de alguns metros de tamanho e a circunferência de um CD”, caso seguisse as fórmulas milagrosas recomendadas via Internet para aumentar o pênis. São milhares de e-mails diários, todo mundo os recebe, homem, mulher, alternativo. Entre as promessas, esticar o dito-cujo em até cinco centímetros. Por semana! Outras tantas mensagens, talvez complementares, oferecem produtos farmacêuticos, tratamentos psicológicos, métodos fitoterápicos e guias de exercícios contra impotência. A filosofia é a seguinte: tamanho sem funcionalidade não põe mesa. Suzana Alves, a Tiazinha, jura preferir “um pequeno brincalhão do que um grande bobão”. Ops, registro minha candidatura. A oferta do momento, acabo de recebê-la, ainda rotulada como “oportunidade natalina”, Viagra com 80% de desconto no cartão de crédito, entrega discreta, satisfação garantida. Já programei o antispam diversas vezes para não receber promoções mentirosas, afinal estou feliz com as modestas armas das quais disponho. Ixe, e se faltar assunto? Melhor liberar o fluxo do correio eletrônico, para caso de necessidade.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

De país a continente



Os ocupantes do Palácio da Resistência usam uma frasezinha simpática, na qual se afirmava "Mossoró está crescendo, só não 'ver' quem não quer". Até sábado último, assumo constrangido, pedindo perdão a Nossa Senhora das Bicicletas, eu não enxergava o crescimento. A chuva de domingo, no entanto, lavou-me os olhos ateus e, desde então, glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, vejo o quanto a tribo monxoró avança: para o caos! E a passos largos! Nos primeiros sinais do período chuvoso, problemas e mais problemas das regiões ditas nobres à periferia. Nas imediações da falecida Lagoa do Bispo, afogando o peito altivo do Nova Betânia, residências invadidas, Polícia Federal ilhada, comércio paralisado. João da Escóssia e José Damião intrafegáveis àquelas alturas. Nas favelas, a do Fio com maior intensidade, casas “na chon”, famílias desabrigadas, risco iminente de doenças, prejuízo, choro, ranger de dentes. Sem necessidade, é claro, pois infraestrutura é ponto forte do governo, que nem São Paulo, diz a propaganda. Resta-nos, então, reconhecer que o País de Mossoró cresceu, agora é continente, a Atlântida do semiárido.

sábado, 26 de dezembro de 2009

2009 foi bom?



Espero que a resposta seja positiva. Se o ano velho aqui e acolá lhe pareceu insensível, pisando seus sonhos, é hora de juntar os pedaços, reunir forças, seguir em frente e, se for o caso, retomar a vida. Permanecer na mesma, como diz Raul Seixas, “esperando a morte chegar”, não faz sentido.

Aconteceram percalços, enterrei amigos, senti o frio da trapaça, desiludi-me com gente, deparei-me com barreiras altas demais para minhas possibilidades de salto. Houve, contudo, passos em terras férteis, a perpetuação da memória, o calor da lealdade, a esperança no próximo e a coragem de retomar a luta, feito a água mansa que devora o rochedo imponente.

O saldo é positivo. Está escrito pelo tempo no rosto da avó, nas rugas dos tios, no exemplo dos pais, na firmeza dos irmãos, na paixão da companheira, no sorriso de cada filho, nos fios jovens de cabelo branco que adornam o espelho. Por isso, declaro-me otimista com a próxima revolução da Terra em torno do Sol.

Pompeu, evocado em Pessoa, garante aos marinheiros: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. E o poeta, reinventando-se em tantas faces e facetas, complementa: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”, fazer algo grande, universal, ainda que seu corpo e alma sejam “a lenha desse fogo”.

Recebo energias do vento que balança a rede e das cores da terra que hipnotizam o verão, no templo imaginário construído entre o morro e o mar, disposto a começar ou recomeçar, conforme o caso ou a necessidade, sonhando ser a fogueira acesa nas orações do profeta lusitano.

Eis-me aqui, prezados amigos, ilustres equivocados, de pé e à ordem, esperançoso por mim e por você, desejando um ano-novo nota 2010 para nós e nossas famílias. Até lá!

sábado, 19 de dezembro de 2009

Saudade das pirocas verdes



Tornou-se uma espécie de tradição natalina tão importante quanto o peru, a árvore, a estrela, os presentes, o Papai Noel. Sempre no início de dezembro, milhares daqueles seres extraterrenos conhecidos como pirocas verdes vinham ao planeta Terra exclusivamente para visitar Mossoró. Chegavam de mansinho, sem fazer barulho, e, quando se percebia, estavam por toda parte, estacionados nos postes da iluminação pública.

Da primeira vez, em função da surpresa, de alguma dose de xenofobia e do medo, a galera reagiu, mas as pirocas verdes, jeitosas, foram penetrando e passaram a gozar de confiança ampla, geral e irrestrita.

Receberam inclusive as chaves do município das mãos da prefeita e o título de cidadania coletiva outorgado pela Câmara Municipal. Choveram convites para entrar no Rotary, na Maçonaria, para frequentar os bailes da AACDP, o Copão, para se converter ao catolicismo, ao protestantismo, ao espiritismo.

Em 2009, apesar de tantos mimos, as criaturinhas simpáticas não deram as caras. As ruas ficaram sem cor, sem vida. E as pessoas começaram a se perguntar: “O que fizemos de errado?”, “Nossas amiguinhas encontraram outro lugar mais quente e úmido onde se alojar durante o período de festas?”, “Por que não escrevem, não telefonam?”.

A imprensa smurf chegou a especular que a culpa era de setores oposicionistas estimulados pela mídia marrom. Inquilinos do Palácio da Resistência, indiferentes à comoção provocada por um final de ano despirocado, limitaram-se a dizer “está tudo azul”.

A verdade, contudo, acaba de ser divulgada, de forma estarrecedora, em blogs e twitters clandestinos, graças a escutas intergaláticas que a “puliça” fez com autorização judicial nos telefones da Gerência de Cultura.

Diálogos entre expoentes do povo piroca e servidores da repartição revelam que a culpa é dos amarelinhos. Anh!... de quem? Deles mesmos. Ao lerem em Notas da Redação, coluna do jornal O Mossoroense, a notícia segundo a qual os chefes do setor de trânsito haviam orientado seus agentes a botar para quebrar no talonário de multas, os visitantes extragês desfizeram as bagagens e cancelaram a viagem.

Claro, porque estacionar em poste, embora com autorização da Cosern, é crime previsto no artigo 2.424 do Código de Trânsito, pecuniariamente punível. Assim, temendo o prejuízo, além do recolhimento das espaçopenisnaves aos fundos da prefeitura, no famoso carro-guincho de setenta contos, as pirocas verdes deixaram nosso Natal às escuras. Que saudade!


PS: se você não conhece o início da história, vide "A invasão das pirocas verdes".

sábado, 12 de dezembro de 2009

P/ Jerônimo Augusto, um beijo tão grande



Engraçado, Jerônimo Augusto assistindo ao DVD “Noites de Gala, Samba na Rua”, no qual Mônica Salmaso interpreta Chico Buarque, acompanhada do grupo Pau Brasil. Sim, porque o cabrito só tem um ano e três meses e fica ali, paradão, especialmente nas faixas “Ciranda da bailarina” e “O velho Francisco”, como se fosse gente grande. Tem mais: ninguém ouse atrapalhá-lo naquele instante de deleite musical.

Todo dia, como se saltasse dos versos de “Cotidiano”, ele faz tudo sempre igual, embioca no quarto e me sacode às seis horas da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde, aperta que aperta os botões do controle remoto, faz beicinho, protesta em nenês antigo, língua dificílima para os adultos normais, que eu, com modesta insanidade, domino sem problemas. Se o tudo não bastar, a mãe entra em cena e liquida a fatura.

Passava das 14 horas, quando cheguei ao apartamento na última terça-feira. Comi o de sempre, um bife de peito de frango, duas colheres de cuscuz, duas de arroz, quatro de feijão, e despenquei nos braços da santa sesta. Deu para perceber, “alguém” me seguia desde a cozinha, tentei dissimular, não funcionou, reagi então dizendo com firmeza: “Hoje não tem historinha de Mônica Salmaso, vou assistir ao jornal”.

Liguei a TV e, hum, quem estava lá? A dita cuja anunciando presença no projeto Nação Potiguar, em Natal, por volta das 19h30, após Diogo Guanabara e Macaxeira Jazz. Agarrei a mulher pelo braço, dei cangapé no moleque, deixando-o com uma tia, afinal a idade ainda não o habilita a extravagâncias, e metemos os pés na BR-304, mesmo sem qualquer sinal de onde e de que modo conseguiríamos os ingressos.

A entrada era franca. Havia, contudo, a necessidade de retirar os tíquetes numa empresa da capital. Ao fim e ao cabo, deu certo, graças às interferências de Luciano Lellys, nosso repórter fotográfico, e de Jô Lopes, colaboradora do O Mossoroense. Valeu a pena o risco, o feitiço, o sacrifício, a viagem repentina, o cansaço, as dores, a nota ruim na prova da quinta-feira, pois a alma, um dia apequenada, fez-se enorme.

Minha gordinha e eu descobrimos Mônica Salmaso quando assistíamos ao documentário “Vinicius”, num cinema natalense. Nesse filme, dirigido por Miguel Faria Júnior, a moça interpreta a música “Canto Triste”, de autoria do homenageado, o poeta Vinicius de Moraes. Algum tempo depois, ela apareceu para alegria e graça dos nossos ouvidos, entoando a canção “Imagina”, no CD “Carioca”, de Chico Buarque.

O galego a descobriu na barriga da mãe, se não mentem os pediatras ao jurarem de pés juntos, mãos postas e olhos rútilos que os bebês ouvem tudo a partir de determinada fase da gestação, destacando o efeito calmante da musica. Não teve o privilégio de aplaudi-la pessoalmente, ao nosso lado, mas ganhou um CD autografado pela cantora, com dedicatória exclusiva: “P/ Jerônimo Augusto, um beijo tão grande”.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Metáforas da saudade



Antes de compreender a geografia do semiárido, na qual se encaixa Mossoró, o sertão para mim se resumia ao Junco. Naquele município, oficialmente chamado Messias Targino, hospedava-me na fazenda Salobro, pertencente a Seu Genuíno e Dona Basílica, ambos de saudosa memória, conduzido por Tasso e Elizenir, genro e filha do casal, pais de meus primos Frediano e Gregório.

Água friinha do pote para o caneco de alumínio e do caneco de alumínio para a boca, coalhada, leite no curral, cavalos, cercas de pedra, banhos de açude, casas e juazeiros mal-assombrados, vaqueiros destemidos, as presepadas de Moió, Pompeu e Janúncio, a vaca de bezerro novo que me fez arrancar a unha do dedão do pé esquerdo numa carreira desatada pelo medo, a moça bonita.

Os Jales são numerosos e acolhedores. As residências, na cidade e no campo, estavam sempre cheias, especialmente nas férias e feriadões, quando parentes que moravam em outros lugares voltavam ao aconchego do lar, fortalecendo os laços e as tradições. Nós, crianças, fazíamos a maior algazarra. Fosse seca, fosse inverno, brincávamos desde o cantar do galo aos templos de Morfeu.

Rememoro tantos momentos alegres, a partir de uma notícia que me partiu o coração: a morte da professora Elza Jales Diniz, em desastre ocorrido no último dia 1º, na RN-117, entre as cidades de Governador Dix-sept Rosado e Caraúbas. Figura boníssima, alegre, cordial, sempre disposta a ajudar o próximo, exemplo de dedicação ao magistério e à terra natal, além de querida por todos.

Não tive contato com ela nos últimos anos. Sabia do Junco e de sua humanidade graças aos relatos feitos por Hédimo Jales, o intrépido Capitão Caverna, mas o bem-querer nunca se perde na distância nem se curva aos caprichos do tempo. Assim, em nome da velha admiração, dedico a Elza e seus familiares, as boas lembranças colecionadas nesta crônica, como metáforas da saudade.

domingo, 11 de outubro de 2009

PALAVRAS NOS BEIJOS DA FADA VERDE



Os beijos da fada verde trouxeram velhas palavras, montes delas, meio confusas e com os olhos no limiar do abismo, e que profundo, mas em razoáveis condições de uso. Acordar um Neruda, caminho para ordenação de significâncias, mesmo quando se raciocina em estado de êxtase. "Ai daqueles que não compre-enderam senão o silêncio, quando a poesia é palavra, e daqueles que só compreenderam a sombra, quando a poesia é luz de cada dia e cada noite dos homens!", adverte o poeta, encorajando quem pretende transgredir a ditadura do senso comum, protestar contra a escuridão e construir enunciados além da meia-noite, sob o signo do desejo e a ascendência da loucura.

Absintar-se às vias do alucinamento, no estilo Belle Époque, e ser independência, convencido de que palavra nasce para ser usada e abusada. Não deve ser emudecida, mesmo maldita, mesmo canalha, mesmo dolorosamente verdadeira, com ares insanos, amargosa feito estrato de artemísia, quando se reveste de propósitos, quando quem a empunha é viciado em liberdade. Caçador de bruxa queima gente, queima livro, sem saber que o pensamento sobrevive ao fogo e viaja nas cinzas com o vento. O pensamento é a alma das palavras, embora umas pobres coitadas sejam ocas de espírito. Só o verbo espontâneo e sem limites pode se contrapor ao verbo espontâneo e sem limites.

E o que fazer agora, se a sorte foi lançada? Há rios de matéria, há prumo e um certo rumo, há também cometimento, certeza de que o verbo é começo, meio e fim, de que o homem é linguagem, território da ideologia, ponto sempre conflituoso, espaço em que o silenciamento representa dominação, ainda mais quando sujeitos não resistem e se deixam arrastar pela espiral afinada dos contentes. Quem vence a constante luta das trevas contra a luz? As trevas? A luz? Não importa, palavra consegue ser palavra, faça chuva ou faça Sol, gaiolas não bastam para detê-la. Veja o caso dos pássaros, que cantando rompem as grades da clausura, transportando-se para onde desejam os seus sonhos.

Verlaine-nos, maldito entre os malditos, pelos lábios líquidos da fada verde, para que os pregadores do medo associados aos escravos da ignorância não reacendam a escuridão das fogueiras do ódio, do terror, e não realizem o enterro da embriaguez da arte. E se isso ocorrer, se refizerem o escuro, não percamos a fé, cantemos como insistiu em cantar Thiago de Mello, porque palavra, inclusive em estado de sombra, ilumina estradas e todo caminho leva a esta vontade de gritar. Nerude-nos, Senhor, para que a poesia "preserve em sua taça a velha primavera assassinada" e que assassinos e comparsas tenham vida longa a fim de que testemunhem a permanente ressurreição da liberdade.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Alucinação



Sonhei com a cachorra da moléstia e arranquei lágrimas do tempo entre sorrisos revirados nas entranhas e palavras fragmentadas nos cacos da felicidade partida a golpes de distância. Segui aperreado nos corredores do labirinto do tal sonho com ares de pesadelo. Meus gritos de pavor morriam em preto-e-branco no eco de paredes mudas enquanto o hálito da besta disforme arrepiava-me os instintos.

Corria, corria, mas nada avançava. Quanto mais corria mais cansava, menos fugia. Busquei no horizonte o coração do dia e encontrei no fundo do olho esquerdo a bicicleta azul acorrentada ao tronco da acácia morta. Não dava fuga. Tentei o olho direito onde estava a taça de fogo. Bebi três lapadas de claridade por engano. Quis novamente correr, desconcentrei-me, caí enjoado sobre o colo da terra.

Caído sobre a terra, ofegante, gritei o versículo xis do capítulo ipsilon do evangelho apócrifo dos boêmios: "A noite é minha pastora e nada me faltará!". Ah, se fosse noite! A noite me conduziria invisível na melodia de seus versos rimados de estrelas, protegido da fera dos seiscentos diabos ressurgida dos confins do subconsciente, lá onde as coisas maléficas devem permanecer todo o sempre.

Infelizmente alguma coisa toca em clave de sol fora de mim. Daí, a luz externa, o corpo visível, vulnerável e impelido à lembrança, mesmo diante da resistência do espírito que se recusa a visitar novamente aquele corpo. Resistir a tudo, menos às tentações, conforme ensina o velho Oscar Wilde, é o que pode ocorrer àqueles que se sentem dominados além dos sentidos, sem controle sequer das pernas.

Quem fez dormir o pobre menino em pleno reino da manhã, quando almas sebosas e libertinas fogem do limbo para se aproveitar dos inocentes herdeiros da madrugada? Quem evocou o súcubo, a besta de olhos castanhos conduzida ao mesmo cruzamento de caminhos imaginários da criança? Maldito seja! Maldito seja! Maldito seja o inventor dessa agonia, desse suor, desse medo, dessa queda.

Ainda bem que meu amor, percebendo os espasmos, o risco, perfumou-se de absurdo, fechou as vistas e apareceu na mesma alucinação a tempo de evitar o ataque da quimera à carne enfraquecida pela incandescência dos flashs. Sem dizer palavra, adiantou-se flutuando nos corredores do inferno, arrebatou-me nos braços, alisou-me os cabelos, beijou-me a boca e, graças a ela, acordei em segurança.

domingo, 27 de setembro de 2009

Eu de manhã



Tudo
que em minha boca cala
traduz o silêncio
posto à mesa
O copo
o uísque
o gelo
o cardápio do Lyon

Há palavras
excitando a tempestade
dicionário de sussurros
e gemidos
gritos de neon
arrepiando a flor da noite

Mas eu
infelizmente
insuportavelmente
terrivelmente
de manhã

sábado, 19 de setembro de 2009

Letra de médico



Aqui e acolá tenho sorte de assistir a Salomão Schvartzman apresentando suas crônicas na BandNews. Acabo de vê-lo, brilhante como sempre, a comparar o sacrifício dos farmacêuticos para traduzir as letras dos médicos e o esforço de Jean-François Champollion para decifrar, além do grego, as inscrições em egípcio demótico e em hieróglifos egípcios estampadas na pedra de Roseta.

Quem frequenta farmácias aprende a admirar a destreza dos seus balconistas. Ler determinadas receitas médicas pode exigir mais esforço mental do que os neurônios queimados por Champollion em busca de compreender o fraseado esculpido no bloco de granito negro descoberto pelas tropas de Napoleão, lá pras bandas de 1799, justo em Roseta, cidadela próxima a Alexandria.

Falo de cátedra, pois sou filho, bisneto, sobrinho e primo de médicos. Tornar-me-ia um deles não houvesse abandonado os estudos aos 16 anos, retomando-os muito posteriormente, já trabalhando em jornal. Para balancear, os avôs eram farmacêuticos, assim como o bisavô materno que também é trisavô paterno. Compliquei? Veja se melhora: mamãe é prima legítima do pai de papai.

Meu primo, digo, meu pai é homem culto, viajado, de muita leitura e texto irretocável, mas faz garrancho em letra de forma. No final dos anos 1970, ele me trouxe um presente e o guardou carinhosamente, deixando-me na cama um bilhete no qual indicava a localização do tal objeto. Precisei esperá-lo até o dia seguinte, após o plantão, porque a única coisa identificável era a assinatura.

Existem casos, no entanto, que comprometem a glória médica. Mestre Câmara Cascudo dizia que o agrônomo Vingt-un Rosado, maior editor brasileiro, tinha a letra ruim inclusive quando escrevia à máquina. Pedi-lhe certa feita que me “traduzisse” escritos seus. Depois de fitá-los com olhar grave, passando a mão no queixo, ele achou graça e disse: “Vamos pedir ajuda ao poeta Caio Muniz”.

sábado, 12 de setembro de 2009

Vai, Cid! ser frouxo na vida



Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(Drummond)


Quando nasci, um anjo caído do Alto do Louvor, com as ideias temperadas nos vapores etílicos e a moleira rachada pelo sol de Mossoró, olhou-me no fundo dos olhos e disse: “Vai, Cid! ser frouxo na vida”. Não levei a sério o vaticínio, mas, logo na infância percebi sua eficácia quando outra criança, menorzinha inclusive, estapeou-me as bochechas rosadas no corredor do Colégio Diocesano, de frente à cozinha de Dona Raimunda, e eu corri em desespero clamando socorro.

O que entristecia até o fim da adolescência, período no qual todos querem ser “os caras”, transformou-se em orgulho na fase adulta. Deus me deu o privilégio de ser pacato e, como diz Mestre Tonino, com a sapiência dos velhos lobos do mar, ninguém derrota a própria natureza. O corpo flácido de musculatura não menos lânguida revela a indisposição deste humilde sujeito que o habita faz 37 anos, quase 38, para a troca de socos, pontapés e mais babaquices da ordem.

Ser assim, molenga militante, tem vantagens, incluindo integridade física e longevidade. Quem compra briga pode levar a morte de brinde, como ocorreu ao sobrinho do vaqueiro da antiga fazenda Mororó. Ouvi sobre suas aventuras de madrugada, escanchado nos mourões do curral, e pouco depois de o dia se espalhar na caatinga empoeirada, ouvi sobre seu passamento na ponta da faca de um sertanejo sereno que reagiu de susto, matando-o por medo de ser assassinado.

Coincidência temática: o radio toca a música “We Can Work It Out”, algo como “Podemos resolver esse problema”, de John Lennon e Paul McCartney. Os Beatles a interpretam enfatizando o trecho “Life is very short/ and there’s no time/ for fussing and fighting, my friend”. Perfeito: “A vida é muito curta/ e não há tempo/ para confusão e briga, meu amigo”. Dou um boi para não cair numa peleja e, se entrar por má sorte, a boiada para escapar sem hematomas.

Brigar não faz parte dos meus defeitos. Tirei a última prova segunda-feira, feriado da Independência, no momento em que um rapaz rico, funcionário de uma empresa importante, tentou intimidar-me com a cara feia e meia dúzia de ameaças, depois que fotografei o estrago feito por vândalos no portão da casa de minha família, na praia de Tibau, bem como placas de veículos suspeitos estacionados em nosso pátio para que, a partir delas, a polícia investigasse o crime.

A figura de sotaque carioca cismou que seu semblante desafiador ficara registrado nas imagens e invadiu nossa propriedade exigindo que eu as apagasse, pois se o seu rosto aparecesse em algum lugar, haveria consequências. O gesto impensado e desrespeitoso, passível de enquadramento em pelo menos dois artigos do Código Penal, provocou o internamento, com severa crise hipertensiva, da senhora que, em meio à cena dantesca, posicionou-se entre nós e o expulsou.

A propósito, nem sei se o valentão aparece nas fotos entregues à polícia. Espero, no entanto, que ele, enxergando-se nestas mal traçadas, reflita sobre seus arroubos juvenis e perceba que o poder da violência se nutre da fraqueza do espírito. Se em vez de paz o texto despertar ódio e o moço resolver concluir o serviço, apresso-me em adverti-lo, como se amigos fôssemos, para evitar constrangimentos: prepare-se porque eu corro muito. Com medo, nem bala me pega.

sábado, 5 de setembro de 2009

“Homem estupra menina com o dedo”



A advogada Marlene Otto Kummer telefonou-me certa vez, danada da vida. O Mossoroense estampara na capa o título “Homem estupra menina com o dedo”. Se não dizia exatamente assim, tinha esse sentido, e foi escrito pelo editor da época, Gilberto de Sousa, hoje na Gazeta do Oeste, que montara estratégia baseada em manchetes policiais fortes buscando tirar o jornal do ostracismo.

Tempos ruins, de vacas esqueléticas. Hoje, a cúpula palaciana boicota aberta, vergonhosa e impunemente a Rede Resistência, excluindo-a dos mapas da propaganda oficial, mas não consegue inviabilizá-la. Naquela época, além da baixa circulação, sofriam-se os efeitos da sanha dos governos municipal e estadual que, na base da ameaça direta, afastava até mesmo anunciantes privados.

A empresa amargou o maior boicote de sua história por defender quem agora a persegue por não conseguir silenciá-la nem com 30 dinheiros públicos. Ironia do Destino! O episódio é famoso, tornando desnecessária a exposição de detalhes. Registre-se apenas que, embora oprimido pelos poderosos de plantão, fecha não fecha, o velho diário impediu que o seu atual algoz acabasse esmagado.

Por outro lado, a polêmica ajudou. A briga, na qual se disse o que ninguém ousava pronunciar, por medo, e a estratégia policialesca do mestre Giba deram sangue novo ao periódico falido. As manchetes de crimes e acontecimentos bizarros, segundo o saudoso Luiz Cavalcanti Filho, impulsionavam as vendas de assinaturas e de exemplares avulsos nas bancas e pelas mãos dos jornaleiros.

Entre as pérolas da fase desesperadora, quando atrasos salariais alcançavam três meses, veio a tal menina que o sujeito estuprou com o dedo. Marlene Otto, leitora fiel e atenta, estava indignada com a frase. “Não existe estupro com o dedo!”, falou-me ela com jurídica razão, pois a ocorrência do referido crime, antes da última reforma do Código Penal, exigia penetração de pênis em vagina.

O simpático carão de Marlene entrou para o anedotário da casa. Acaba de ser lembrado porque o atentado violento ao pudor, crime do qual foi vítima a jovem da notícia, incorporou-se ao tipo penal do estupro, com a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Na ótica contemporânea, dedos podem consumar o estupro. O selinho que o turista italiano deu nos lábios da filha, em Fortaleza, estão jurando ser estupro. A polícia alencarina interpreta assim. Tudo é estupro. Homem pode ser estuprado. Mulher pode estuprar. Até parece que Giba furou o Código Penal com seu grande faro de repórter. Eita-pau, será que esse tipo de furo também é estupro?